quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Uma versão para a origem dos danos morais e das astreintes no Direito brasileiro

Chamaram-no negrinho.

Ele não se incomodou porque, a despeito de não chegar a ser negrinho, tinha um dos pés na cozinha, ou na lavanderia, ou na senzala.

As filhas do coronel o haviam assim discriminado, coisa que àquela época talvez fosse menos comum do que nos dias de hoje, dias de direitos constitucionais compensatórios, mas ele realmente não se sentiu menosprezado ou diminuído por isso. Pensou que, se fosse branco, chamá-lo-iam galego. Se fosse ainda mais branco, chamá-lo-iam alemãozinho comedor de batata. Chamá-lo-iam de qualquer coisa, pois simplesmente queriam ofendê-lo. Tornou-se irado só quando elas disseram que era muita petulância um escritorzinho de meia-tigela como ele querer fundar algo que, não sabiam muito bem, mas o tornaria imortal. A imortalidade, diziam, era coisa para Virgílio, não para quem se embebeda nuns olhos de cigana. Denominá-lo escritorzinho, e de meia-tigela!, não era ofensa qualquer, porque ele de fato se considerava um dos melhores, talvez de todos os brasileiros.

O coronel, por seu turno, adorava-o desde os tempos em que residia no interior do Brasil. Homem que nunca largou as letras, a despeito de treinado nos campos de batalha do antigo Mato Grosso, na famosa guerra em que surramos os paraguaios invasores, lugar em que ombreou em armas e em dignidade aos varões mais capacitados. Lá continuou residindo, não tão perto da fronteira, pois Aquidauana fica um tantinho longe do Paraguai, mas próximo o suficiente para se mobilizar em caso de nova, porém improvável, invasão. E, mesmo no interior, ainda assim se interessava pelos hábitos da capital, por seus escritores, por seus artistas, e adquiria tudo o que podia para se sentir mais próximo da cultura que não possuía ali. Inclusive as obras do negrinho, que não era assim tão negrinho, mas que considerava muito bom escritor.

O coronel só abandou o interior depois de lhe ocorrer um caso engraçado, já que certamente não há nada tão engraçado quanto receber uma carta laudatória de um amigo, louvando suas qualidades que seriam comparáveis às de Napoleão, numa data especial: a da própria morte. Só que ele não havia morrido naquele dia. Aliás, viveu por muito tempo depois de ler a malfadada carta. Era mais uma brincadeira do mineiro que havia muito morava naquelas bandas, e, porque não tinha nada para fazer, todos os dias arrumava algo com o qual pudesse incomodar o coronel, seu vizinho de cerca. O mineiro chegou até a enterrar o amigo no dia seguinte, com discurso e missa em latim, que encomendara no dia anterior, data da suposta morte do tão bravo companheiro.

Quando não agüentou mais as brincadeiras do mineiro, que vivia com um capim no canto direito da boca e só sorria o tempo todo, sorriso matreiro típico de quem apronta quieto para rir no final do dia duma só vez, às gargalhadas, o coronel foi para o Rio de Janeiro, lugar em que tentaria casar suas quatro filhas, das quais três eram muito feias, horríveis mesmo, e uma se salvava porque parecida com a mãe.

E não sabia que, ao lá chegar, seria personagem secundária de um processo que traria consigo duas das maiores inovações do direito brasileiro de então, já que teve de auxiliar as filhas na peleja.

Ofendido com as quatro filhas do coronel, o negrinho aforou demanda com a qual pleiteou que fossem condenadas a repará-lo pelos danos morais que lhe haviam causado, quando o alcunharam de escritorzinho de meia-tigela. Novidade que, naquele período, não era aceita, mas que o foi porque o demandante não a trouxe só. Acompanhou-a com certa francesa de nome astreinte, multa que ele próprio fixara ao juiz e que ainda não detinha caráter pecuniário, ao contrário do que ocorre hoje, pois atualmente é o juiz que a fixa a uma das partes e só em pecúnia, com o pedido seguinte:

“Se não condená-las, condeno-as eu, com a publicação do conto que segue anexado.”

Assinou a novidadeira petição, o Doutor Machado de Assis.

sábado, 1 de setembro de 2012

Considerações breves sobre a aplicação horizontal dos direitos fundamentais

 

I. Propedêutica

1. Recentemente, uma notícia internacional causou certo furor naqueles que se dedicam ao estudo dos direitos fundamentais. Principalmente naqueles que veem com apreensão a aplicação horizontal desses direitos, que os veem sendo usados para regular as relações travadas entre particulares.

2. O site Consultor Jurídico[1] noticiou que, na Inglaterra, um casal proprietário de singela pousada na Cornualha havia sido condenado em razão de não aceitar que nela dois homossexuais dormissem juntos, no mesmo quarto.

O casal proprietário da pousada sustenta – e ainda o faz, porque o processo está na Câmara dos Lordes aguardando decisão final – que, em razão de professarem uma das muitas vertentes do cristianismo, não permitem que durmam no mesmo quarto pessoas que não são casadas, quer sejam heterossexuais ou homossexuais.

De seu turno, os homossexuais alegam que aforaram a demanda pleiteando indenização pelos danos morais por eles sofridos, haja vista que jamais poderão hospedar-se naquela pousadinha da Cornualha, pois na Inglaterra eles são proibidos de casar-se um com o outro. Logo, dizem os homossexuais, houve indevido cerceamento de direito seu; o que há de ser reparado pecuniariamente por meio da condenação da pousada.

3. É claro que o problema da aplicação horizontal dos direitos humanos não poderia ser abordado todo ele num mero artigo como este.

No entanto, algumas coisas hão de ser ditas, pois causa perplexidade o rumo que os Tribunais do mundo todo têm dado ao tema.

II. Problemas

4. Imagine se uma mulher quisesse ser admitida na Maçonaria, por exemplo. Ou se um homem casado quisesse ser ordenado sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana[2], num outro exemplo à primeira vista absurdo.

É claro que, pelos dispositivos que regem internamente essas organizações, tal mulher sequer poderia ser admitida na Maçonaria ou o homem casado ser ordenado sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana.

Mas é de se pensar até quando será assim.

E a dúvida aqui, por incrível que pareça, é real.

5. Recentemente, um famoso clube de São Paulo teve decisão de seus associados alterada pelo Poder Judiciário, justamente com suporte na aplicação horizontal dos direitos fundamentais.

De fato, os associados do Clube Paulistano não admitiram que um homem passasse a frequentá-lo como dependente de um associado seu, com quem mantinha relação homossexual duradoura.

Ao analisar o caso, o Poder Judiciário modificou a resolução dos membros do Clube Paulistano, permitindo assim que aquele com quem um associado convivia numa relação homossexual viesse a integrar os quadros dessa associação.

6. Em outro caso curioso, a Dinamarca promulgou lei que obriga a Igreja da Dinamarca a realizar casamentos entre homossexuais[3].

7. Logo se vislumbram os problemas que a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas causarão, pois são muitos e muito significativos.

III. Solução

8. Os direitos fundamentais não foram pensados para proteger um cidadão do outro, pois as relações entre particulares vêm sendo reguladas pelo Direito civil – bem reguladas, aliás – faz muito.

Os direitos fundamentais serviram como proteção do homem contra o arbítrio estatal.

Ao que parece, usá-los nas relações entre particulares é uma forma que o Estado encontrou de gerenciar a vida das pessoas, tolhendo a liberdade delas por meio da imposição de valores que não são por elas compartilhados.

9. Se um casal cristão só quer ceder os quartos de sua pousada a pessoas casadas, o que o Estado tem de ver com isso?

Certamente haverá muitos e muitos lugares em que as pessoas solteiras poderão dormir juntas na mesma alcova.

10. Se um clube não aceita determinado fulano como dependente de associado seu, porque não são casados, qual é o problema?

Existem milhares de clubes por aí que os aceitarão.

11. Por que impor às pessoas valores que não são por elas compartilhados, que não são os seus?

12. Eis a intervenção estatal, que vem travestida com as vestes politicamente corretas da modernidade.

13. A solução para casos tais, aqui apenas esboçada timidamente, é, no meu pensar, restringir a aplicação dos direitos fundamentais a casos nos quais estejam em conflito os cidadãos de um lado e o Estado de outro.


[1] http://www.conjur.com.br/2012-ago-15/suprema-corte-britanica-julgar-liberdade-religiao-legitima-discriminacao.

[2] Cabem alguns esclarecimentos, pois muita gente confunde a Igreja Católica com a Igreja Católica Apostólica Romana, uma vez que o líder desta é também o líder daquela.

No entanto, a Igreja Católica é maior do que a Igreja Católica Apostólica Romana, pois é composta por outras 22 (vinte e duas) igrejas particulares, que mantêm comunhão plena com aquele que acreditam ser o sucessor de Pedro, o bispo de Roma (Papa).

Dessas igrejas particulares, a maior e mais conhecida no ocidente é a Igreja Católica Apostólica Romana, na qual o sacerdócio é exclusivamente exercido por homens solteiros.

Isso não é regra da Igreja Católica, porém. É regra da Igreja Católica Apostólica Romana e de algumas outras igrejas particulares.

De fato, há igrejas particulares – principalmente aquelas que usam quaisquer das liturgias orientais, como é o caso da Igreja Maronita do Líbano – em que os padres podem ser casados, se à época em que recebem a ordenação sacerdotal já o sejam.

E a Igreja Maronita é uma das que integram a Igreja Católica, e, a despeito de suas particularidades (as quais fazem muitos descendentes de libaneses pensarem que seus pais e avós eram ortodoxos, pois o rito usado pelos maronitas é o mesmo de algumas igrejas ortodoxas), está umbilicalmente ligada ao bispo de Roma, vendo nele o sucessor legítimo de Pedro e, por isso, guia da Igreja universal.

[3] Por incrível que pareça àqueles que pensam que a liberdade está relacionada ao laicismo estatal, a Dinamarca, um dos países mais liberais de todo o mundo, é um reino no qual há religião oficial: é a luterana Igreja da Dinamarca.