quinta-feira, 28 de junho de 2012

Texto interessantíssimo de Daniel Marque sobre o ateísmo moderno


Do Protestantismo ao Ateísmo Moderno e Relativismo Contemporâneo
Uma leitura dos acontecimentos históricos
Por Daniel Marques*
RIO DE JANEIRO, quinta-feira, 28 de junho de 2012 (ZENIT.org) -É possível fazer uma leitura dos acontecimentos históricos que percorrem desde o surgimento do Luteranismo até o relativismo atual através da chave de interpretação da quádrupla negação. Sendo que uma negação prepara o sucessivo “não”. Vejamos de modo concreto para entender a questão.
DEUS SIM, IGREJA NÃO
É a negação surgida e instaurada por Lutero. Permite uma visão mais subjetivista da fé, onde realça o caráter pessoal da salvação em detrimento do caráter institucional. É possível seguir a Deus, sem seguir uma instituição em concreto. Nega-se o caráter necessário da Igreja para a salvação, para isto, será necessário defender um conjunto de conceitos epistemológicos que será à base do pensamento da filosofia moderna.
DEUS SIM, CRISTO NÃO
Esta segunda grande negação é própria do século da ilustração, onde se busca uma fé fundada apenas na razão. Aceita-se a Deus, mas apenas como um grande relojoeiro que fez sua obra prima (o cosmos), a dotou das forças necessárias para se autogerir e foi embora. A providência é jogada no lixo, surge o DEISMO. Um Deus sem culto e despersonalizado. O homem é senhor total e absoluto de seu próprio destino. Nega-se a transcendência. A realidade não é apreendida objetivamente pelo ser humano, mas construída intelectualmente através das percepções sensitivas que são próprias a toda raça humana.
É no contexto desta segunda negação que surge a Revolução Francesa, retirando dos templos católicos a presença dos santos e de Cristo eucaristia, e erigindo altares à Deusa Razão. Uma “contraditio terminis”, pois “mitologizam” a fé católica, retiram dos evangelhos tudo que seja milagroso e sobrenatural e ao mesmo tempo criam culto e templo para a “Deusa Razão”.
É um racionalismo fundando na irracionalidade do caos e da violência. Destinada intelectualmente ao fracasso, a revolução tinha seus dias contados, apesar da propaganda massiva da revolução perpetrada por Jacques-Louis David criando obras como o Juramento de Horácio (cena dramática que convida a população a pegar em armas) e perpetuando o mártir da revolução no quadro “A morte de Marat”.
A revolução francesa nasce de exigências legítimas de uma população que sofria pela fome, crise nas colheitas e impostos sufocantes. No entanto, conduzida não pela razão que tanto defendia, mas pelo terror das guilhotinas. O lema “liberdade, igualdade e fraternidade”, pese seu caráter evangélico e de se propor como novo evangelho, era escrito pelo sangue de muitos homens e mulheres que não se alinhavam. Vemos a expropriação das propriedades do clero, a assassinato de sacerdotes, religiosos e religiosas. A Fé católica é vista como fundamento do Ancient Regime e como tal deve ser varrida do mapa, como principal inimiga da revolução e de seus ideais.
Surge, então, como resposta a esta barbárie um novo absolutismo que se espalha por toda a Europa. Mas, o mundo já não era mais monárquico, a semente do pensamento revolucionário já tinha sido plantada. E mais tarde crescerá com mais furor através da revolução marxista que veremos a seguir na terceira negação.
DEUS NÃO, O HOMEM SIM
É a última negação presente no séc. XIX. Deus já não é necessário para garantir a ordem do mundo. A única realidade é a material e a este senhor devemos prestar contas. Seu fundamento é a filosofia Hegeliana. Onde o espirito absoluto é traduzido à matéria. E os indivíduos são apenas um momento, uma ocasião para o desenvolvimento da matéria, do mundo perfeito sem classes e de total igualdade.
Na filosofia marxista, não há pessoas, existe apenas o estado, que se desenvolve através da dialética de lutas de classes. O novo homem e nova humanidade marxista é a síntese final do processo dialético, onde a tese são os sistemas econômicos burgueses e a antítese é a classe operária explorada. O marxismo acelera o confronto entre ambas que ocorrerá de modo necessário.
A visão de pessoa humana como um momento do processo dialético materialista é o que justifica a barbárie de mais de 100 milhões de pessoas exterminadas por Stalin. Os comunistas alegam que isto ocorreu porque Stalin desvirtuou a revolução. Em realidade, ele se apresenta como aquele que leva até as últimas consequências os pressupostos filosóficos da revolução.
A negação de Deus só é possível, em última instância, através da negação do ser humano, o que nos conduz a uma quarta negação.
O HOMEM NÃO
A degradação da razão humana conduz a negação da impossibilidade da existência de qualquer verdade absoluta. A filosofia hermenêutica presente na obra “Verdade e Método” de Gadamer é um exemplo. O homem constrói a verdade segundo seu grupo social e cultura, e este grupo com “suas verdades" é que constrói o homem e a verdade das coisas. Deste modo, a verdade é sempre mutável e não um termo “ad quo”, não há uma finalidade para vida humana, mas apenas uma construção de algo caótico a um nada último.
Esta visão epistemológica se apresenta como fundamento do relativismo moral e do indiferentismo religioso. Quando tudo é verdade, não existe verdade. E quando nada é objetivamente verdadeiro, todas as coisas são colocadas no mesmo plano, perdendo seu valor. Priva a racionalidade humana do principio de não contradição, conduzindo a humanidade a ações bárbaras.
Sobre a bandeira da tolerância, o relativismo implanta uma verdadeira ditadura da força e do poder. Pois quando não há uma verdade como critério e medida de nossas ações, se implanta a verdade subjetiva dos mais fortes. Por isso, as politicas e medidas sociais são implantadas não em vistas a um bem comum, ou um critério de bondade e verdade, mas segundo pressões sociais, econômicas ou interesses privados.
Assim vemos a aprovação das uniões homoafetivas, a aprovação do aborto em geral, e do bebê anencéfalo em especifico. O homem volta-se contra o mesmo homem, pois ferido em sua racionalidade, é incapaz de perceber as consequências de seus atos que vão contra a sua própria humanidade.
CONCLUSÃO: UNIDADE SUBSTANCIAL DO SER HUMANO
Existe uma profunda unidade entre as questões religiosas, econômicas, filosóficas, sociais e politicas. Não são elementos separados, pois quem as elabora, vive e pratica é o homem. O ser humano é o centro das questões.
Por isso, um subjetivismo religioso exacerbado de Lutero nos conduz a uma filosofia moderna que coloca o homem como criador da realidade e a Deus apenas como garantidor de uma ordem. Este racionalismo moderno exige a existência de um Deus impessoal e ordenador, surgindo o Deísmo próprio do iluminismo, com sua expressão mais “gloriosa e nefasta” instaurado no culto à “Deusa Razão” no período da Revolução Francesa. Revolução esta guiada por um desejo de fazer o bem, mas com princípios que levariam ao terror. Neste processo de degradação da razão humana o surgimento de regimes ateus, o indiferentismo e o relativismo presentes nos dias atuais são consequências naturais.
Um processo de negação da objetividade das coisas que "corrói" a razão humana, pois negar a capacidade de transcendência humana, é negar a mesma humanidade.
* Daniel Marques é formado em Humanidades Clássicas em Salamanca, Espanha, obteve a graduação e o Mestrado em Filosofia em Roma, e atualmente cursa o 2o. ano de teologia na arquidiocese do Rio de Janeiro. 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Apontamentos sobre a união estável – artigo originalmente publicado pela Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo nº 26, adaptado agora às alterações legais supervenientes

 

Sumário: I. Propedêutica – II. A união estável e o regime de comunhão parcial de bens – III. A inaplicabilidade do regime de comunhão parcial de bens em certas situações – IV. O regime patrimonial do concubinato. V. O fim do casamento – VI. A inconstitucionalidade do art. 1.723, § 1.º, do Código Civil – VII. Conclusão.

Resumo: O objetivo do artigo é analisar alguns aspectos olvidados do regime patrimonial da união estável, bem como apontar a inconstitucionalidade do art. 1.723, § 1.º, do Código Civil.

Abstract: The aim of this paper is to analyze some forgotten aspects of patrimonial regimen of the stable union, and to sustain the unconstitutionality of the article 1.723, § 1.º, of the brazilian Civil Code.

Palavras-chave: União estável – Regime patrimonial – Inconstitucionalidade – Art. 1.723, § 1.º, do Código Civil.

Keywords: Stable union – Patrimonial regimen – Unconstitutionality – Article 1.723, § 1.º, of the brazilian Civil Code.

I. Propedêutica

1. Com o novo Código Civil, que tão novo assim não é mais, adveio a regulação estratificada da união estável.

De forma um tanto confusa, o Código Civil trouxe artigos que, se aplicados fossem de acordo com sua letra fria, dariam ensejo a injustiças as mais flagrantes.

2. Colha-se, por exemplo, o art. 1.725, segundo o qual, salvo estipulação contratual em contrário, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens[1].

3. Como regra geral, até que o art. 1.725 vai bem. No entanto, as coisas se complicam um pouco em determinadas situações.

Como fica, por exemplo, o patrimônio do casal que convive em união estável, mas se encontre na situação prevista pelo art. 1.523, inc. I, do Código Civil[2]? Ou seja: se um dos companheiros for viúvo e não tenha feito o inventário dos bens amealhados no casamento findado, comunicar-se-iam os bens adquiridos na constância desta união estável por força do art. 1.725 do Código Civil? E mais: como fica o patrimônio adquirido em união estável que se iniciou quando um dos companheiros contava com mais de 70 (setenta) anos? Ou quando um deles se uniu ao outro sem o necessário suprimento judicial?[3]

4. Há outra coisa curiosa. De acordo com o art. 1.723, § 1.º, do Código Civil[4], a união estável ocorrerá mesmo que um dos companheiros esteja ainda casado, porém separado de fato ou judicialmente.

5. O problema que traz o aludido dispositivo é de ordem constitucional.

A Constituição expressamente prevê que o divórcio põe fim ao casamento, de modo que aceitar a união estável de pessoa casada, posto que separada de fato ou judicialmente, pareceria burla à regra constitucional do art. 226, § 6.º[5].

Se na separação não houvesse ocorrido a divisão do patrimônio do casal, aceitar a união estável daquele que se encontra casado seria o mesmo que admitir a confusão entre os dois patrimônios; o patrimônio oriundo do casamento e o que se origina na união estável.

Situação desagradável a todos e repelida pelo Direito.

6. A fim de abordar esses dois problemas – os quais, caso não resolvidos de modo convincente, acarretarão balbúrdia em situações corriqueiras nos tribunais – é que se escrevem as breves anotações que seguem.

II. A união estável e o regime de comunhão parcial de bens

7. Em primeiro lugar, cumpre destacar que os companheiros podem elaborar contrato por meio do qual regulem o patrimônio que há de ser amealhado na constância da união estável.

8. Com efeito, e isso deve ficar claro, o aludido contrato, para que seja eficaz contra terceiros, haverá de ser registrado no cartório de registro de imóveis do domicílio dos companheiros, à semelhança do que se dá com todas as convenções antenupciais[6].

9. O que interessa para o estudo, no entanto, não são as peculiaridades que circundam a eficácia do contrato elaborado pelos companheiros para a regulação do patrimônio que há de ser por eles fisgado na constância da união estável, mas o regime patrimonial daqueles que, se se casassem, não poderiam adquirir patrimônio comum.

Noutras palavras: o que interessa é a aplicação do art. 1.725 do Código Civil àquelas situações nas quais os companheiros até poderiam casar-se, mas o regime patrimonial de tal casamento seria obrigatoriamente o da separação de bens.

10. Parece óbvio que, se o patrimônio do casal regularmente casado se regeria necessariamente pela separação de bens, o da união estável – que nada mais é do que o rascunho, o simulacro de casamento que se avizinha, e teima em não acontecer – também deva sê-lo.

Seriam tais palavras a repetição do óbvio, então? Desnecessárias, talvez?

Às vezes o óbvio precisa ser exaustivamente reproduzido, pois nem todos guardam consigo as lições de Carlos Maximiliano[7], segundo as quais:

““Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.”

11. Se qualquer dos companheiros se encontrar em situação que, se se casasse, o regime patrimonial do casamento reger-se-ia necessariamente pela separação de bens, esse também será o regime obrigatoriamente aplicado à união estável, nos termos do art. 1.641 do Código Civil.

Em outras palavras: o art. 1.725 do Código Civil rege os casos em que couber o regime de comunhão parcial de bens se os companheiros resolverem casar-se; mas não aquelas uniões estáveis que se encontram maculadas por quaisquer das pechas que impõem ao casamento o regime da separação de bens[8].

12. Infere-se, do exposto, que o art. 1.725 nada mais é do que a regra geral, a qual se encontra recheada de exceções; coisa que até ele próprio admite quando limita seu próprio império quando e no que couber.

III – A inaplicabilidade do regime da comunhão parcial de bens em certas situações

13. Quais seriam as uniões estáveis cujo regime patrimonial não poderia ser o da comunhão parcial de bens?

A resposta é simples, e singela será a análise de cada uma das aludidas situações.

14. Todas as uniões estáveis em que um dos companheiros estiver em situação na qual não poderia casar-se por força do já transcrito art. 1.523 do Código Civil.

Relembrem-se as hipóteses que suspendem o casamento, consoante o art. 1.523 do Código Civil:

“Art. 1.523. Não devem casar:

“I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;

“II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até 10 (dez) meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;

“III – o divorciado, enquanto não houver sido homologado ou decidida a partilha dos bens do casal;

“IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.”

15. E qual é a conseqüência para aqueles que casam em desrespeito ao art. 1.523 do Código Civil?

Impõe-se necessariamente o regime da separação de bens, nos termos do art. 1.641, inc. I, do mesmo Código Civil.

16. Ora, se o regime patrimonial dos casamentos celebrados em desrespeito ao art. 1.523 do Código Civil é obrigatoriamente o da separação de bens, certamente o é também para as uniões estáveis que se constituírem em confronto com o mesmo dispositivo legal.

17. E isso por duas razões: primeiro, porque se a união estável se convertesse em casamento, tal qual querido pela Constituição Federal, o regime patrimonial do casamento seria o da separação obrigatória; depois, porque evitaria que os casais fraudassem as conseqüências impostas pelo art. 1.641, inc. I, do Código Civil, que é a aplicação obrigatória do regime da separação de bens, mantendo-se simplesmente em união estável, a fim de que se aplicasse ao patrimônio adquirido na constância desta o prescrito pelo art. 1.725 do Código Civil.

18. Cabem aqui algumas considerações sobre as relações que se iniciam sob o manto da união estável e, depois de sanado o vício que impunha o regime da separação obrigatória de bens, converte-se em casamento.

Evidentemente que a relação há de ser analisada como uma só, como se fosse uma continuidade, pois é exatamente disso que se trata nos termos da Constituição Federal, de tal modo que o regime que há de reger o patrimônio do casal é, sem dúvida, o da separação obrigatória.

Se, por exemplo, uma mulher cujo casamento foi declarado nulo passa a viver em união estável com determinado homem depois de 6 (seis) meses da decretação de nulidade do primeiro matrimônio, em desrespeito ao art. 1.523, inc. II, do Código Civil, ainda que tal união estável se converta em casamento depois de ultrapassados os 10 (dez) meses previstos na legislação, o regime de bens será o da separação obrigatória.

Não se pode compactuar com a fraude à lei[9].

19. Também se aplicará ao patrimônio adquirido na constância da união estável o regime da separação obrigatória de bens, se qualquer dos companheiros tiver mais de 70 (setenta) anos ou se um deles mantiver-se em tal situação porque não conseguiu a necessária autorização judicial para casar-se, em conformidade ao art. 1.641, incisos II e III, do Código Civil.

20. Ao que parece, o Superior Tribunal de Justiça[10] tem-se curvado diante da lógica imposta pelo sistema, pois recentemente declarou que “à semelhança do que ocorre com o casamento, na união estável é obrigatório o regime de separação de bens, no caso de companheiro com idade igual ou superior a sessenta anos”.

No entanto, registre-se que na mesma notícia colocou-se trecho do voto do Ministro Luís Felipe Salomão, para quem: “A companheira fará jus à meação dos bens adquiridos durante a união estável, desde que comprovado, em ação própria, o esforço comum”.

21. Se se deve concordar com a primeira asserção, segundo a qual se impõe o regime da separação obrigatória de bens caso um dos companheiros tenha mais de 70 (setenta) anos; merece reparos a colocação de que, se demonstrar esforço comum, o companheiro que se uniu ao septuagenário fará jus à meação dos bens adquiridos na constância da união estável.

E há de ser criticado pois, se esse companheiro se casasse com o septuagenário, ainda que comprovasse que se esforçou para adquirir determinados bens, a eles não faria jus nos termos dos art. 1.641, inc. II, art. 1.687 e art. 1.688 do Código Civil[11].

Ora, o Superior Tribunal de Justiça não pode ir além da lei para privilegiar quem a lei não privilegiou nem se se casasse, sob pena de cair naquilo que o Min. Marco Aurélio[12] sabiamente denominou de justiça salomônica, em voto cujo trecho segue porque, a despeito de tratar de outro tema, calha à fiveleta:

“Sob o ângulo da busca a qualquer preço da almejada justiça, considerado enfoque estritamente leigo, não merece crítica o raciocínio desenvolvido. Entrementes, a atuação do Judiciário é vinculada ao Direito posto. Surgem óbices à manutenção do que decidido a partir da Carta Federal.”

22. No caso versado pelo Superior Tribunal de Justiça, há óbice intransponível para que se reconheça o direito à meação ainda que quem se uniu a septuagenário (ou a qualquer outro que se encontre em uma das situações previstas no art. 1.523 do Código Civil) comprove que os bens foram adquiridos pelo esforço comum. Trata-se do direito posto, do direito querido pelo legislador, o qual não pode ser desconsiderado com suporte no argumento do que seria justo ou équo.

De fato, o art. 1.641 determina que o patrimônio amealhado na constância do casamento que teve início quando um dos consortes contava com mais de 70 (setenta) anos será regido pela separação obrigatória, não pode o Superior Tribunal de Justiça permitir que burle tal regra aquele que nem chegou a casar-se, mas simplesmente viveu em união estável.

Se se aceitasse isso, estar-se-ia acolhendo o engodo à regra jurídica e a fraude ao regime democrático. Haveria Estado regido pelo arbítrio dos juízes; e não pelas leis.

23. Para concluir o tópico, afirme-se que ao companheiro não pode ser dado mais do que o ordenamento jurídico daria ao cônjuge.

IV – O regime patrimonial do concubinato

24. Depois de todo o exposto, resta indagar: qual é o regime patrimonial que rege o concubinato?

Há quem defenda a aplicação da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual:

“Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.”

25. Todavia, há-se de atentar para um dado: a aludida súmula foi prolatada para regular o concubinato puro, hoje denominado união estável, e não para reger o regime patrimonial do concubinato impuro ou adulterino.

Para se chegar a tal conclusão, basta trazer à memória os julgamentos que a precederam.

No recurso extraordinário nº 52.217/GO, o caso era o seguinte: trata-se de demanda na qual pleiteou indenização a mulher que havia convivido por mais de 20 (vinte) anos com homem viúvo.

Noutro versar: não havia qualquer impossibilidade para que a relação entre os dois companheiros se convertesse em casamento, de modo que o Supremo Tribunal Federal se defrontou com o que se denominaria hoje união estável, antigamente chamada concubinato puro.

E em todos os outros casos julgados pelo Supremo Tribunal havia situação semelhante; ou seja: referiam-se ao concubinato puro.

26. Aliás, a Súmula 380 serviu para regular aquelas situações que se assemelhavam ao casamento, que eram como que um arremedo do casamento, que poderiam transmutar-se em casamento, mas que em casamento não redundaram.

27. O Supremo Tribunal não versou, em momento algum, sobre casais que, a despeito de conviverem, viviam num concubinato impuro porque casar-se não poderiam.

28. Para esses últimos casos, hoje simplesmente denominados concubinato, qual haveria de ser a regra a ser aplicada?

Infelizmente, não se há de aplicar o art. 1.725 do Código Civil, a fim de que sejam partilhados os bens do casal, uma vez que essa é a regra que rege o patrimônio daqueles que convivem em união estável.

Os que se encontram impedidos de casar, se acumularem patrimônio, não poderão dividi-lo, nem que seja provado o esforço comum.

E isso porque não se há de atribuir direitos àquele que conviveu com outrem em relação proibida, proscrita pelo ordenamento e por ele abominada. Tanto é que o Código Civil nem mesmo se deu ao trabalho de regulamentar a aquisição patrimonial do casal que se encontra em tal situação, limitando-se a asseverar, em seu art. 1.727, que constituem concubinato as relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos de casar.

29. Ademais, seria fraudar a lei considerar que, porque houve esforço comum, o patrimônio do casal haveria de ser repartido.

Ora, admitir essa hipótese é o mesmo que remeter ao esquecimento puro e simples a proscrição de tal situação, assemelhando-a àquelas que não são proscritas.

No mesmo sentido do exposto, segue o seguinte julgado[13]:

“União estável. Concubinato impuro. Relacionamento com homem casado. Impossibilidade de a união ser convertida em casamento. Pretensão da companheira à partilha de bens ou indenização pelo tempo em que as partes mantiveram relacionamento. Inadmissibilidade. Inteligência do § 3º do art. 225 da CF.”

30. Diante disso, tem-se que, encerrado o concubinato, os concubinos dele sairão com os bens que estiverem alocados em seu patrimônio individual.

V. O fim do casamento

31. O ponto final do casamento é o divórcio. Hoje facilmente conquistado, pois nem mesmo se exige, depois da Emenda Constitucional n.º 66, que haja prévia separação. Basta a vontade de um dos componentes do casal de encerrar o casamento, e nada mais.

32. Sobre os meios de dissolução do vínculo conjugal, prescreve o art. 1.571, § 1.º, do Código Civil:

“§ 1.º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente.”

Noutro versar: a separação, judicial ou de fato, não põe fim ao casamento, a despeito de encerrar a sociedade conjugal.

Cumpre delimitar, então, o que implica o término da sociedade conjugal decorrente da separação.

33. A separação, tanto a judicial como a de fato, não extingue o matrimônio, de acordo com o próprio Código Civil.

Poderia, diante de tal situação, uma pessoa casada, porém separada, unir-se à outra, e o patrimônio colhido nesta união ser regido pelo art. 1.725 do Código Civil?

A resposta há de ser desenganadamente negativa, uma vez que, posto que separada de fato ou em virtude de decisão judicial, o separado ainda se encontra casado, e pode muitas vezes sequer ter apartado seu patrimônio do do seu cônjuge, de tal ordem que aceitar a aplicação do art. 1.725 do Código Civil seria o mesmo que embaralhar os patrimônios do casamento e o da união estável.

34. Por força do exposto, então, deve-se atentar para a aplicação do regime de comunhão parcial de bens àqueles que se encontram em convivência, a despeito de um deles ser casado, pois a aceitação de tal regime aqui é inadmissível. Trata-se, a bem da verdade, de concubinato impuro e como tal há de ser regido.

VI – A Inconstitucionalidade do art. 1.723, § 1.º, do Código Civil

35. Para facilitar a leitura, transcreve-se de novo o apontado dispositivo legal:

“§ 1.º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.”

Em palavras outras: haverá união estável, de acordo com o transcrito dispositivo legal, ainda que um dos companheiros esteja casado, mas se estiver separado de fato ou por decisão judicial.

36. Padece, o aludido artigo, de flagrante inconstitucionalidade, uma vez que a união tem de obrigatoriamente tender ao casamento, nos termos do art. 226, § 3.º, da Constituição Federal, segundo o qual:

“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facultar sua conversão em casamento.”

A Constituição é clara ao prescrever que a união estável tende ao casamento.

Como se há de casar alguém que ainda casado está?

Eis a pergunta que deve ser respondida ao se aplicar o art. 1.723, § 1.º, do Código Civil.

37. Acresça-se ao exposto que, de acordo com o art. 3.º da Lei n.º 6.515/77 e art. 1.576 do Código Civil, a separação judicial põe termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens.

No entanto, de acordo com o art. 1.581 do Código Civil[14], o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha dos bens.

Em outro giro verbal: mesmo que a separação encerre o regime matrimonial de bens, nem a separação nem o divórcio implicará necessariamente a partilha deles, de tal sorte que mesmo depois do divórcio poderá existir patrimônio comum entre os cônjuges que se divorciaram, o que trará, caso algum deles se reúna à outra pessoa, a indesejável confusão patrimonial, se aplicado for o art. 1.725 do Código Civil a esta nova união[15].

38. O que se percebe é que o Código Civil, talvez influenciado pelas fumaças da tão festejada pós-modernidade, foi além da Constituição e, o que é pior, contraria o próprio sistema do casamento que regulamenta.

Ora, é o próprio Código Civil que, em seu art. 1.751, § 1.º, prescreve que só a morte, a ausência e o divórcio põem fim ao casamento.

Como pode, alguns artigos antes, prescrever que pode conviver em união estável aquele que se encontre casado, ainda que esteja separado de fato ou judicialmente?

Há de haver coerência, não só entre as normas de hierarquias distintas, como é o caso da Constituição e do Código Civil, como também dentro de um mesmo diploma normativo!

Não se pode admitir que o Código Civil aceite o divórcio como o ponto final do casamento, mas ao mesmo tempo acolha que pessoas simplesmente separadas se ajuntem em união estável; uma vez que a união estável obrigatoriamente deve tender ao casamento, e não há casamento de pessoa casada.

39. Desse modo, fácil é perceber que a inconstitucionalidade do art. 1.723, § 1.º, do Código Civil, que contraria frontalmente o art. 226, § 3.º, da Constituição Federal.

VII. Conclusão

40. Em frente do explanado, tem-se que:

a) Na união estável, se qualquer dos companheiros se encontrar em situação na qual teria de casar-se obrigatoriamente pelo regime da separação obrigatória de bens, esse é o regime a ser aplicado.

b) O concubinato não gera qualquer direito patrimonial aos concubinos, porque se trata de situação proscrita pelo Direito.

c) O art. 1.723, § 1.º, do Código Civil padece de inconstitucionalidade invencível, uma vez que, de acordo com o art. 226, § 6.º, da Constituição Federal, não se admite que quem esteja casado também viva em regime de união estável com terceira pessoa, ainda que separado de fato ou por decisão judicial do cônjuge.

VIII. Bibliografia

Cavalcanti, Lourival Silva. União estável. São Paulo: Saraiva, 2003.

Peluso, Cezar (coordenador). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 4. ed. Barueri, SP: Manole, . 2010.

Pereira, Rodrigo da Cunha. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, vol. XX.

Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2002.


[1] Código Civil:

“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”

[2] Código Civil:

“Art. 1.523. Não devem casar:

“I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;

“II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até 10 (dez) meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;

“III – o divorciado, enquanto não houver sido homologado ou decidida a partilha dos bens do casal;

“IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.”

[3] Código Civil:

“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

“I – das pessoas que o contraíram com inobservância das causas suspensivas da celebração;

“II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

“III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”

[4] Código Civil:

“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

“§ 1.º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.

“Art. 1.521. Não podem casar:

VI – as pessoas casadas;”

[5] Constituição Federal:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

“§ 6.º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.”

Mesmo com a alteração advinda da Emenda Constitucional n.º 66, não se crê que a separação tenha sido revogada por incompatibilidade com o novo texto constitucional. De fato, ao que parece numa primeira lida no atual dispositivo constitucional combinada com o Código Civil, o casa poderá optar entre o divórcio direto e a separação, sendo que desta para aquele não mais será necessário aguardar um ano, se se tratar de separação judicial, ou dois, caso se defronte com separação de fato.

[6] Lei n.º 6.015/73:

“Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

“I – o registro:

“12) das convenções antenupciais;”

Ainda de acordo com a Lei n.º 6.015/73:

“Art. 244. As escrituras antenupciais serão registradas no livro n.º 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros.”

[7] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Forense: Rio de Janeiro, 2002, p. 136.

[8] Devem-se relembrar aqui as seguintes palavras:

“O casamento é o parâmetro usado pelo legislador para regulamentar os efeitos patrimoniais da união estável. Assim, toda a regulamentação da união estável é uma tentativa de aproximação das normas do casamento, embora sejam institutos diferentes” (Pereira, Rodrigo da Cunha. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, vol. XX, p. 152).

Infelizmente, o festejado Professor não vai além, pois parece só admitir a inaplicabilidade do art. 1.725 do Código Civil aos casos em que os companheiros elaboraram pacto de convivência por meio do qual determinaram como serão regidas as relações patrimoniais com origem na união estável.

O mesmo se pode dizer de obra dedicada à união estável de Lourival Silva Cavalcanti, na qual o autor se limita a afirmar que o “Código Civil é taxativo quanto à adoção do mesmo regime legal de bens do casamento”, sem se aprofundar muito (Cavalcanti, Lourival Silva. União estável. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 147).

[9] Contra legem facit, qui id facit quod lex quod lex prohibet, in fraudem vero, qui salvis verbis legis sententiam eius cincumvenit (Faz contra a lei o que faz o que a lei proíbe, em fraude da lei o que, salvas as palavras da lei, o sentido da lei elude) (Paulo, na L. 29, D., de legibus senatusque consultis et longa consuetudine, 1, 3).

[10] Notícia publicada no sítio do Superior Tribunal de Justiça no dia 23 de junho de 2010, a cujo acórdão não se teve acesso por se tratar de processo que corre em segredo de justiça. É claro que tal notícia se refere a fato anterior à mudança do art. 1.641, inc. II, do Código Civil.

[11] Código Civil:

“Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.”

“Art. 1.688. Ambos os cônjuges são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo estipulação em contrário no pacto antenupcial.”

[12] Recurso Extraordinário n.º 590.779. Rel. Min. Marco Aurélio. 1.ª Turma. DJe 27.03.2009.

[13] RT 818/340. In Peluso, Cezar (coordenador). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 4. ed. Barueri, SP: Manole, 2010, p. 2.020.

[14] Código Civil:

“Art. 1.581. O divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens.”

[15] Ao divorciado que se casa ou se une em união estável sem antes realizar a partilha dos bens angariados no findado casamento, aplica-se o regime patrimonial da separação obrigatória.