quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Entrevista com Rodrigo Gurgel

Segue entrevista dada por Rodrigo Gurgel ao blog Ad Hominemhttp://www.adhominem.com.br/2012/12/ad-hominem-entrevista-rodrigo-gurgel.html

Vale a leitura!

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Coração das Trevas de Conrad

Já havia lido "O Sonho do Celta", no qual Mário Vargas Llosa relata a passagem de Roger Casement pelo Congo à época em que essa região pertencia ao Rei Leopoldo II da Bélgica.

Coincidentemente, iniciei a novela de Joseph Conrad ambientada também no Congo de Leopoldo II.

Não que o livro de Vargas Llosa seja ruim, pois longe está disso. Só que o de Conrad é uma verdadeira obra-prima. Simples. Sem rodeios. Uma narrativa sufocante por meio da qual a personagem principal conta em primeira pessoa a degradação à qual chegou, a degradação espiritual à qual os homens podem chegar.

Poucas vezes, e aqui incluo os romances sempre exasperantes e perturbadores de Dostoiévski, senti a alma revirar-se tanto.

Eis aí minha recomendação para o final do ano. Recomendação para quem realmente quer refletir sobre o significado de sua própria vida.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Execução no Processo Civil: mudando paradigmas


i. Introdução

1. O processo civil tem um objetivo: fazer com que as leis sejam aplicadas a situações conflituosas, de modo a resolvê-las definitivamente por meio da decisão estatal.
Aqui, então, encontram-se os três elementos que, juntos, compõem a jurisdição: o conflito, a solução estatal do conflito e o caráter definitivo dessa solução.
2. Só que não basta que se encerre o conflito com a aplicação da lei. Às vezes é necessário não só aplicar a lei ao caso concreto, mas fazer com que aquele que saiu derrotado da demanda cumpra uma obrigação (reconhecida pela decisão estatal, criada por esta ou pela vontade das partes, desde que, nessa última hipótese, também seja admitida pela lei).
3. E é justamente para fazer com que alguém que tem uma obrigação mas teima em não adimpli-la que há a execução, meio pelo qual o Estado invade o patrimônio do devedor e de lá retira bem – o qual legitimamente se encontra nesse patrimônio – para satisfazer a obrigação inadimplida.
4. Do exposto se vislumbram alguns dados que, agora, merecem realce. Em primeiro lugar, a necessidade prévia de decisão judicial que resolva determinada lide, certo conflito de interesses consubstanciado numa pretensão resistida. Depois, que da resolução dessa lide nasça ou se reconheça uma obrigação que há de ser satisfeita. Por fim, que o devedor deixe de adimplir tal obrigação.
5. Nesses casos terá início a execução de título executivo judicial, a ser regulada pelos arts. 475-I a 475-R do Código de Processo Civil, caso o inadimplemento seja de obrigação de entregar dinheiro, ou pelos arts. 461 e 461-A do mesmo Código, se se tratar de obrigação de dar, fazer ou não fazer.
6. No entanto, e aqui se trata de política legislativa, a lei reconhece em alguns documentos força suficientemente capaz de autorizar o credor a iniciar a execução, aqui sim se trata de autônomo processo de execução, sem que haja prévia decisão que resolva qualquer lide.
7. Na verdade, a resolução da lide, nas execuções de títulos executivos extrajudiciais, será posterior ao aforamento do processo de execução e eventual, pois caberá ao devedor decidir se questionará ou não aquela obrigação que, num primeiro momento, parece inadimplida.
8. Eis então que surge a execução de título executivo extrajudicial, tal qual regulada pelos arts. 566 a 795 do Código de Processo Civil. Além da execução de título executivo extrajudicial regulada pelo CPC, ainda há outras, destacando-se, dentre estas, a execução fiscal.
9. O que se verifica, então, é que o processo civil não é um fim em si mesmo. Ele é simplesmente o instrumento que há de ser usado para que quem tem direito reconhecido também possua o bem da vida ao qual tem direito.
10. E, isso é bem visível na execução, que, como afirmado anteriormente, é o meio pelo qual o Estado invade a propriedade do devedor e de lá extrai o bem ou os bens necessários à satisfação do credor.

II. A mudança  de paradigma

11. Ovídio Baptista da Silva, em interessante trabalho sobre a Execução na tradição romano-canônica, destaca a separação artificial do processo de conhecimento do processo de execução como o gérmen que deu início à corrosão da própria execução.
12. Independentemente de ele ter razão ou não, e parece que tem, o que de fato interessa é que a execução não se mostrou capaz de satisfazer os anseios dos credores; decerto porque a maneira como foi regulada pelo Código de 1973 não permitiu que o Poder Judiciário se imiscuísse na propriedade do devedor senão pelos modos tipificados pela lei. Algo que demanda tempo, sendo que – e é bom lembrar – os devedores brasileiros são muito mais ágeis para ocultar bens do que a burocracia do Poder Judiciário para encontrá-los!
13. Porque desde o Código de Napoleão se passou a considerar quase pecado mortal a intromissão no patrimônio de quem quer que seja, estipulou-se que a execução haveria de ser feita sempre do modo tipificado legalmente, para evitar o abuso dos juízes do ancien régime, e do jeito menos gravoso para o devedor (ainda vigente, mas mitigado art. 620 do Código de Processo Civil).
14. O panorama legal de então deixava claro algo que os brasileiros percebemos rapidamente: só paga conta quem quer.
15. Ocorre que a ineficácia dos meios executivos colocou em descrédito o Poder Judiciário e o próprio Estado brasileiro (se é que é possível tirar crédito de quem não o tem), pois ninguém em sã consciência – quer seja brasileiro ou estrangeiro – investiria uma pataca que fosse aqui diante da incapacidade que teria de receber esse investimento de volta, graças ao calote generalizado.
16. Some-se ao exposto, o que não é pouco, algo que se encontra fora do processo, só que dentro do coração dos brasileiros: a aversão ao lucro.
Aqui sempre se deu e sempre se dará um jeitinho de proteger o devedor, principalmente se o credor for empresa de nomeada, porque se parte do pressuposto psicológico de que o pequeno não precisa passar por muitos perrengues para encher os bolsos de um grande conglomerado empresarial ou coisa do gênero.
E assim o Poder Judiciário passou a comportar-se como Robin Hood.
Fecham-se os parêntesis.
17. As coisas vêm mudando. De fato, hoje se municiou o juiz de meios com os quais, se tiver um pouquinho de boa-vontade, satisfará a obrigação voluntariamente descumprida pelo devedor.
18. Um exemplo, e me parece o mais marcante, é a possibilidade que os arts. 461 e 461-A dão ao juiz de invadir o patrimônio do devedor, sem que a medida por ele tomada esteja tipificada pela lei.
Ou seja: deu-se ao juiz carta branca para satisfazer a obrigação inadimplida, diante da renitência do devedor.
Com efeito, e aqui se reporta à execução para a entrega de coisa, antes o credor deveria encontrar o devedor, citá-lo para que entregasse o bem ou o depositasse, discutisse o que haveria de discutir ou o que não haveria de discutir, para que só depois se desse àquele (ao credor) o bem que lhe deveria ter sido entregue no princípio. Hoje as coisas são diferentes, e o juiz pode simplesmente determinar que o bem seja entregue sob pena de tomar qualquer medida coercitiva que entender necessária para que sua ordem seja obedecida.
19. É clara a mudança de paradigma, é visível a alteração do espírito do processo civil brasileiro.
Em verdade, as pessoas que trabalham, as pessoas sérias –  que são a maioria da população – não mais toleram um Poder Judiciário ineficiente e um processo civil lento, pois esses entraves só beneficiam aqueles que sempre arrumam um jeitinho de não pagar o que devem.
20. Felizmente, a seriedade começou a ditar o ritmo do processo civil, o que se percebe muito claramente com a mudança de paradigma introduzida na execução pelas recentes reformas por que passou o Código de Processo Civil - já à beira de extinção.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Um pouco de economia


No dia 04 de dezembro de 2012, li o artigo de Renato Janine Ribeiro publicado pelo Valor Econômico. Assustei-me com o teor (e com a gramática!), pois a mim me pareceu a tentativa de justificar a corrupção endêmica que assola o Brasil com a tese de que coisa parecida houve em todos os locais nos quais se viu desenvolvimento semelhante ao brasileiro. Trata-se, então, da defesa econômica dos Aloprados, do Cuecão, do Mensalão e das Rosemarys.
Só que o interessante é que o próprio articulista relaciona a corrupção à ascensão de governos de esquerda.
E não é que ele tem razão! Pelo menos no que atine ao segundo aspecto.
Devagar, devagarinho chegarei lá.
Em primeiro lugar, rememoro a pergunta à qual o articulista tentou responder. Ei-la: “Haverá um link entre políticas de inclusão social, governos de esquerda, e a corrupção?”
Renato Janine Ribeiro – depois de traçar paralelos insustentáveis entre assuntos completamente desconexos, como, por exemplo, as opiniões divergentes sobre aborto! – afirma o seguinte: “No fundo, a corrupção parece maior quando a inclusão social é promovida, não por uma revolução, mas de dentro, por uma fração minoritária da classe dominante que tem a inteligência de cooptar frações significativas das classes pobres”.
Alguns temas, que pareceriam de somenos importância, hão de ser resgatados para que explique e critique o texto de Renato Janine Ribeiro.
Em primeiro lugar, todos os que têm cacoetes mentais de esquerda não acreditam na liberdade individual. Para pessoas assim, tudo pode ser explicado por regras mecânicas que regeriam o comportamento individual. Se se fizer isso, naturalmente se dará aquilo.
É claro que as pessoas não são regidas pelas mesmas normas vistas na natureza. Se se colocarem duas pessoas sob as mesmas condições de pressão e temperatura, ainda que estejam na mesma altitude, elas não se portarão de modo idêntico.
Só que esquerdistas não creem nisso. Eles acreditam (e é crença mesmo, porque se trata de religião) que as pessoas não conseguem dirigir-se a si próprias, pois, se postas em idênticas condições econômicas, certamente se comportarão de igual forma. É a exclusão do livre-arbítrio.
Daí, da crença que os esquerdistas têm na inexistência de livre-arbítrio, eles concluem que o povo jamais alcançaria o progresso social e econômico por conta própria, mas que necessitariam sempre de guias iluminados, como, no caso do artigo em discussão, foram chamadas as elites (outro vocábulo sempre usado pelas esquerdas).
E o raciocínio é simples: se o povo está submetido à condição econômica degradante, não poderá dela sair, uma vez que todas as estruturas existentes tendem a mantê-lo (povo) ali. Só uma revolução (violenta ou não) poderia tirar o povo do atraso em que se encontra. E a revolução há de ser liderada por pessoas que não pertencem ao povo, claro!, mas por iluminados que o dirigirão rumo ao paraíso. Por isso tantos professores universitários são de esquerda! Eles são os iluminados que vieram resgatar o povo do estado de servidão em que se encontra.
A crença na missão que teriam, a de dirigir as massas, faz com que os esquerdistas desacreditem da democracia. Eles acreditam que devem guiar os povos oprimidos, tomando de assalto o Estado e nele se encastelando para de lá comandar a revolução.
Bom, só que um Estado pequeno não serviria aos propósitos dos esquerdistas. O Estado tem de ser grande, pois, por meio dele, almejam planejar e dirigir a vida de todos, distribuindo os recursos econômicos entre as várias classes econômicas que compõem a sociedade, de acordo com o que entendem justo.
E aqui está o x da questão: ao tomar para si a incumbência de gerir e distribuir as riquezas produzidas pelas pessoas de determinado local, é claro que os servidores públicos desse Estado terão mais chances, muito mais chances de se apropriar dessas riquezas ilicitamente, pela simples razão de que a elas terão acesso. E a tentação é grande!
Assim, é lógico que um Estado maior – sonho da esquerda – gera mais corrupção. Não se sabe, no entanto, se essa não é a razão pela qual as esquerdas de fato querem um Estado mastodôntico.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Texto excelente de Paul Medeiros Krause, publicado pelo site Migalhas em 04.12.12


A moral burguesa como fonte dos "direitos sexuais" e do novo conceito de "famílias"

Paul Medeiros Krause

"Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial." (A cidade de Deus. Santo Agostinho).

“Acaso é inútil tudo aquilo que não nos põe de pronto dinheiro nos bolsos, que não nos proporciona um patrimônio imediato?” (Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Johann Wolfgang von Goethe).
A partir da ideia de Santo Agostinho, que Gustavo Corção seguiu e desenvolveu em "Dois amores – duas cidades", assinalando a prevalência do materialismo na civilização moderna (em que inserimos também a pós-moderna ou contemporânea), em detrimento da metafísica, do homem espiritual, do homem interior, prevalecente nas civilizações antiga e medieval, pretendemos demonstrar a artificialidade dos conceitos contemporâneos de "direitos sexuais" e de "famílias". Procuraremos evidenciar que os conceitos de "direitos sexuais" e de "famílias" possuem matriz materialista, consubstanciada em correntes de pensamento de fundo ateísta, agnóstico ou deísta, sobressaindo o neomarxismo, o liberalismo político e o utilitarismo. Será nosso objetivo, ainda, sustentar que tais correntes de pensamento fornecem visões parciais e reducionistas do ser humano, dando azo à manipulação ideológica da definição dos direitos humanos, isso sem falar em que o laboratório em que foram produzidas foi o ambiente de experimentação burguês.

I – O conceito marxista de família de Rodrigo da Cunha Pereira

Rodrigo da Cunha Pereira, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), renomado especialista em Direito de Família, elabora a sua crítica ao modelo tradicional de família a partir de Friedrich Engels, Marx, Freud, Claude Levi Strauss e Jacques Lacan. Entreguemos-lhe a palavra:

"A partir do Século XIX, muitos pensadores começaram a levantar teorias sobre a origem do patriarcado. Alguns afirmaram, e ainda afirmam, que o domínio masculino sobre o feminino é da natureza. Que, naturalmente, os machos são dominadores. Mas os pensadores mais importantes que mais convenceram neste aspecto o pensamento contemporâneo foram Marx e Engels. Eles demonstraram que a divisão sexual do trabalho dava origem a uma divisão social do trabalho, levando ao aperfeiçoamento das tecnologias, dando origem ao excedente (lucro). Tais excedentes, usados como valores de troca, originaram uma classe dominante que, vivendo destes excedentes, escravizou, criou a propriedade privada, em detrimento da comunidade. Segundo Engels, nessa época o sexo feminino é dominado e reduzido ao âmbito privado, para fornecer o maior número de filhos para produzir mais, defender a terra e o Estado. A supremacia masculina surge, pois, com a cultura competitiva do excedente, em que as mulheres vão pouco a pouco sendo dominadas para que possibilitem produzir mais riqueza. Instalada a divisão sexual do trabalho, nasceu o patriarcado."1

Consoante Cunha Pereira, a família patriarcal, a primeira pela qual o direito teria se interessado, possui origem na luta de classes. A primeira classe dominada foi a das mulheres, pois elas, na antiguidade, eram responsáveis pela produção da mais-valia apropriada pelos varões. Não obstante, com a devida vênia ao douto doutrinador, a explicação marxista da história não é verossímil, chegando mesmo a ser curiosa. O homem antigo já teria elaborado toda uma estrutura social de dominação para expropriar das mulheres o fruto do seu trabalho, mesmo antes de se dar conta da existência de uma estrutura social.

Para negar que a família seja uma organização natural e que homem e mulher possuam papéis diversos e complementares na ordem natural, o autor citado lança mão da cosmovisão marxista, com o maniqueísmo da luta de classes que a caracteriza. Todavia, uma vez mais, não se afigura verossímil que o homem antigo seja a própria encarnação do mal. A nosso ver, não existe base teórica ou científica para afirmar-se que, enquanto o homem antigo seja a personificação do mal, a mulher seja a encarnação do bem. Tal distinção, artificiosa, é completamente arbitrária.

Nota-se, claramente, que Cunha Pereira adota uma interpretação burguesa da história. Transpõe o mundo burguês para o mundo antigo. O homem antigo nem sequer poderia ter imaginado ouvir falar em capitalismo; não obstante, ávido por riqueza – mesmo antes de existir moeda –, já consistiria em um capitalista cruel.

As famílias eram numerosas simplesmente porque os métodos anticoncepcionais ainda não existiam. Todavia, o autor quer sustentar que a prole numerosa visava exclusivamente à produção da mais-valia. É evidente que essa interpretação da história não somente não se sustenta, como transpõe para o homem antigo uma consciência e realidade próprias do homem burguês. Há nela confusões lógica, cronológica e terminológica.

Preferimos outorgar a origem da família a uma necessidade natural do ser humano, de que as instituições religiosas eram um reflexo eloquente. As principais instituições humanas, inclusive as regras basilares de direito, têm nascedouro intimamente vinculado à prática e às normas religiosas. Durante muito tempo, confundiram-se as normas religiosas com as regras de direito. Não foi de imediato que o homem se deu conta da autonomia científica do direito. Mas isso não exclui o papel que o sentimento religioso desempenhou no revelar ao homem o direito. O direito, a família e o casamento decorrem da própria natureza humana, que se reflete e se revela nas regras e instituições religiosas. Tenhamos em mente as seguintes considerações de Fustel de Coulanges, que contradizem afirmações de Rose Marie Muraro – feminista laureada, parceira de Leonardo Boff no livro Masculino & Feminino, citada por Cunha Pereira2 – segundo as quais a mulher estava excluída da religião antiga:

"A primeira instituição estabelecida pela religião doméstica foi, de fato, o casamento.
Notemos que essa religião do lar e dos antepassados, transmitindo-se de varão para varão, não pertenceu exclusivamente ao homem, pois a mulher também tomava parte no culto. Como filha, a mulher assistia aos atos religiosos do pai; depois de casada, aos do marido.
Só por isso podemos avaliar o caráter essencial do matrimônio entre os antigos. Duas famílias, vivendo uma próxima da outra, têm deuses diferentes. Em uma delas, a jovem participa, desde a infância, da religião do pai; invoca o seu lar [deus]; oferece-lhe libações diárias, cerca-o de flores e de grinaldas nos dias festivos, pede-lhe proteção, agradece-lhe os benefícios. Esse lar paterno é o seu deus. Se, porém, um rapaz da família vizinha a pede em casamento, trata-se, para ela, de algo bem diferente do que passar de uma casa para outra. Trata-se de abandonar o lar paterno, para invocar dali em diante o lar do esposo. Trata-se de mudar de religião...".3

Cumpre notar, porém, a insistência com que o Presidente do IBDFAM sustenta a lógica da expropriação na origem do patriarcado:

"Engels, um dos autores que melhor escreveu [gostaríamos de saber com base em que o autor pressupõe isso] sobre a origem da monogamia e sua introdução no cenário da Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea, nos diz que a monogamia entra na História não como uma forma mais elevada do matrimônio e não é também uma reconciliação entre o homem e a mulher. Ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, aplacando um conflito, ignorado na pré-história, mas principalmente para garantir que a paternidade seja indiscutível e que os filhos na qualidade de herdeiros terão assegurada a transmissão da herança."4

Sublinhe-se que Cunha Pereira ignora a estreita vinculação do grupamento familiar e do patriarcado com a prática religiosa, de modo a querer atribuir-lhes uma explicação puramente materialista. Seria o caso de advertir o autor de que o materialismo ainda não existia, de modo que não é razoável atribuir ao homem antigo o exercício da prática religiosa com o escopo exclusivo de alienar e explorar a classe dominada. Imbuído de sua lógica materialista, o autor não consegue enxergar finalidades espirituais ou metafísicas na religião: está patente a sua obsessão pela luta de classes, como clave única para interpretar a história. Demais disso, ele pressupõe, mas não demonstra, a razão pela qual Marx e Engels teriam fornecido a interpretação mais convincente a respeito da origem da família monogâmica e do casamento.

Em sentido diametralmente oposto ao de Cunha Pereira, e de forma muito mais convincente, afirma Fustel de Coulanges:

"A instituição do casamento sagrado deve ser tão antiga na raça indo-europeia como a religião doméstica, porque não se verifica uma sem a outra. Esta religião ensinou ao homem que a união conjugal é bem mais que a relação de sexos ou o afeto passageiro, unindo os dois esposos pelo laço poderoso do mesmo culto e das mesmas crenças. A cerimônia das núpcias era, além disso, tão solene, e produzia efeitos tão profundos, que não nos devemos surpreender se esses homens julgavam não ser permitido nem possível ter-se mais do que uma mulher. Essa religião não podia admitir a poligamia.
É bem compreensível que semelhante união fosse indissolúvel e tornasse o divórcio quase impossível."5

Estamos falando do casamento cristão-católico? Não.

Não somente a Rodrigo da Cunha Pereira, mas a pensadores da Escola de Frankfurt, notadamente a Herbert Marcuse, as teses psicanalíticas de Freud pareceram as mais apropriadas para fornecer uma explicação marxista da cultura e da sociedade, isto é, para fazer o marxismo transpor o âmbito estritamente econômico. Para Marcuse, a civilização ocidental fundamenta-se na repressão, que permite a manutenção do status quo de alienação do produto do trabalho em prol do capitalista:

"O conceito de homem que emerge da teoria freudiana é a mais irrefutável acusação à civilização ocidental – e, ao mesmo tempo, a mais inabalável defesa dessa civilização. Segundo Freud, a história do homem é a história da sua repressão. A cultura coage tanto a sua existência social como a biológica, não só partes do ser humano, mas também sua própria estrutura instintiva. Contudo, essa coação é a própria precondição do progresso. Se tivessem liberdade de perseguir seus objetivos naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda a associação e preservação duradoura..."6

A propósito, acrescenta Cunha Pereira:

"A investigação antropológica de Freud permitiu-lhe concluir que 'os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o Complexo de Édipo'. E o Complexo de Édipo nada mais é que a 'Lei do Pai' (Lacan), ou seja, a primeira lei do indivíduo e que o estrutura enquanto sujeito e lhe proporciona o acesso à linguagem e consequentemente à cultura.
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Essa obra veio demonstrar, como já se disse, que o incesto é a base de todas as proibições. É então a primeira lei. É a lei fundante e estruturante do sujeito e, consequentemente, da sociedade e, portanto, do ordenamento jurídico. É somente a partir dessa primeira lei, quando o indivíduo teve acesso à linguagem, que pôde perceber, com a proibição, que existiam outros totens e fazer nascer a cultura.
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E assim podemos dizer que é exatamente porque existe a interdição do incesto, que o homem é marcado pela 'Lei do Pai', que se torna possível e necessário fazer as leis da sociedade onde ele vive, estabelecendo o ordenamento jurídico".7

É necessário dizer que, para Freud, os interditos e as proibições, a repressão sexual, são a origem de todas as neuroses humanas. Além disso, para Cunha Pereira, a evolução das sociedades atuais, sobretudo com a valorização da mulher, não mais se compadece com a estruturação da civilização em torno da Lei do Pai. As interdições em matéria sexual não seriam naturais, mas meramente culturais. Entretanto, Cunha Pereira sustenta que a interdição do incesto é a origem da civilização e do ordenamento jurídico.

Com muito mais razão, porém, o antropólogo finlandês Edward Westermarck, autor da monumental História do casamento, evidencia que o convívio familiar, a intimidade sobre o mesmo teto, cria, naturalmente, mesmo entre não consanguíneos, a diminuição do desejo sexual.

Em reforço da sua tese, Westermarck menciona o caso de crianças israelenses sem laços biológicos criadas em kibutzim, espécie de fazendas coletivas. Westermarck demonstrou que a convivência sobre o mesmo teto cria, quando pelo menos um dos indivíduos é pequeno, naturalmente, espontaneamente, uma verdadeira repulsa sexual. A essa descoberta, que joga por terra o mitológico Complexo de Édipo e a Lei do Pai, deu-se o nome bem concreto de efeito Westermarck.

Talvez o raciocínio de Freud se aplique com o seguinte temperamento: a repressão anormal, antinatural, ao indivíduo é fonte de neuroses. Não é necessário que a repressão seja de caráter sexual, no que, evidentemente, a teoria de Freud é reducionista, quer explicar tudo a partir da sexualidade. Ocorre que a repulsa ao incesto é natural, surge da intimidade do convívio familiar e não por qualquer mecanismo social repressor, não sendo fonte de neurose alguma, muito menos de neurose coletiva e de expropriação. No particular, a teoria de Freud é uma ficção insustentável, prestando-se indevidamente a servir de suporte a outras tantas teorias insustentáveis.

Como se viu, o homem antigo era essencialmente religioso, como reforça Gustavo Corção, seguindo a doutrina dos dois amores. É impossível dissociar da gênese da instituição humana casamento o caráter religioso que lhe era essencial. Pretender transformar o homem antigo em um burguês ateu ou agnóstico do século XIX constitui erro histórico crasso e deturpação ideológica da origem do fenômeno casamento. A isenção e a imparcialidade históricas de Cunha Pereira ficam claramente comprometidas pelo fato de ele tentar explicar a realidade com uma lógica reducionista, espremendo aquela para dentro dos conceitos marxistas.

Também se patenteia que o pressuposto fundamental a partir do qual o jurista ora estudado estrutura todo o seu pensamento – a naturalidade do incesto, é completamente equivocado, visto a naturalidade colocar-se exatamente do lado oposto: é natural dentro do ambiente e da intimidade familiar a diminuição do desejo sexual, quando pelo menos um dos indivíduos é criança. Para corroborar isso, isto é, a antinaturalidade do incesto, bastaria que nos socorrêssemos de lições elementares de genética, que demonstram ser ele fonte de graves patologias hereditárias e de enfraquecimento da descendência. Não houvesse a interdição do incesto, muito possivelmente não estaríamos aqui hoje.

Há quem diga que o modelo de família tradicional é burguês. Tal afirmação não encontra alicerce histórico. Como se percebe, o modelo da família tradicional é muito anterior ao advento da burguesia. Os novos modelos de família, fundamentados em novas interpretações da história, sim, é que são burgueses.
II – O burguesismo candente no discurso dos direitos sexuais


Amparados em concepções de mundo burguesas são igualmente os conceitos de direitos sexuais defendidos por Roger Raupp Rios, José Reinaldo de Lima Lopes, Paulo Gilberto Cogo Leivas, Roberto Arriada Lorea, Miriam Ventura, Samantha Buglione (todos eles coautores do livro Em defesa dos direitos sexuais, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007) e Maria Berenice Dias (Manual de Direito das Famílias). Alguns autores possuem marcada posição marxista, como Roger Raupp Rios e Maria Berenice Dias. José Reinaldo de Lima Lopes segue na linha do utilitarismo de John Stuart Mill. Paulo Gilberto Cogo Leivas adota o liberalismo político. O denominador comum em relação a todos esses autores é o materialismo, a hostilidade fundamental ao sentimento religioso ou, simplesmente, a uma concepção metafísica do ser humano. Em outras palavras, há uma vinculação genética entre todos esses conceitos. Se sujeitarmos ao teste de paternidade todas essas teorias, o pai será o mesmo: o ambiente burguês com a sua aversão congênita à metafísica.

Os defensores da ideologia dos direitos sexuais – não se trata de verdadeiros direitos humanos, mas de manipulação ideológica do conceito de direitos humanos – não disfarçam a sua ojeriza à concepção cristã de família e de casamento. Entretanto, claro está que se equivocam atribuindo a concepção do modelo tradicional de família ao cristianismo. É certo que o cristianismo, que possui nítido valor antropológico, contribuiu para a compreensão da ideia de família e para a valorização da mulher, por exemplo, com o culto à Virgem Maria, considerada a criatura mais elevada, mais próxima da Divindade. Todavia, pela referência que fizemos ao casamento sagrado romano, tal como o relata Fustel de Coulanges, nota-se que a gênese do matrimônio, a sua nota de indissolubilidade e a monogamia estavam intimamente vinculadas ao sentimento religioso, mesmo não cristão, que nada mais traduzia do que a realidade essencial do casamento, como instituição natural ao ser humano, tal como a própria religião. Em outras palavras, o sentimento religioso revelou a própria natureza das coisas.

Frise-se bem: como a maior parte dos defensores dos direitos sexuais é partidária da ideologia marxista, as ideias de luta de classes e de opressão são dirigidas também contra as supostas instituições responsáveis pela manutenção do regime repressor. Nesse sentido, a concepção cristã-católica de família passa a ser vista, numa interpretação marxista da história, como uma forma de impor-se a ideologia de dominação, de favorecer a exploração de uma classe por outra. As “minorias” são vistas como verdadeiros explorados, material, social e culturalmente.

Trata-se de nova forma de maniqueísmo. Aliás, tanto no marxismo como no liberalismo, que acabaram por transpor os limites das teorias econômicas, o maniqueísmo está presente. No marxismo, o opressor é a classe dominante, e o oprimido, o trabalhador e as minorias. No liberalismo, o opressor é o Estado, e o oprimido, o indivíduo, o burguês, com a sua liberdade.

Enganam-se os que pensam que marxismo e liberalismo sejam antagônicos. Marxismo e liberalismo são irmãos gêmeos, filhos da moral burguesa e da civilização do homem exterior, como esclarece Gustavo Corção:

“Foi no ambiente da moral burguesa da civilização ocidental dos últimos séculos que ganhou vulto essa concepção que se caracteriza pela valorização do homem-exterior e dos bens materiais que formam a ganga do Homo-Oeconomicus. Muita gente se engana pensando que essa concepção do homem foi trazida ao mundo pelo marxismo: ao contrário, foi ela que trouxe o marxismo ao mundo. Pode-se fazer um esquema que indica a germinação das duas concepções da vida que parecem antagônicas, mas que de fato têm origem comum na moral burguesa, ou moral do homem-exterior, como veremos a seguir:

Moral do homem exterior – Homo Oeconomicus
Sociabilidade fundada na penúria do indivíduo
Sociedade competitiva
Individualismo Coletivismo
Capitalismo Socialismo
Liberalismo Estatismo”8

Ocorre que as correntes filosóficas que valorizam a metafísica levam real vantagem sobre as concepções materialistas do homem, nitidamente insuficientes para explicar a própria origem e existência do sentimento religioso e de instituições humanas que nasceram junto à religião. A metafísica permite-nos ter uma ideia completa do ser humano, da sua realidade física e espiritual, enquanto que o marxismo, o liberalismo, o utilitarismo e o pragmatismo são incapazes de explicar o homem em sua inteireza, desconhecendo a sua realidade espiritual. Doutrinas de fundo ateísta e agnóstico duvidam da sinceridade do sentimento religioso, presente no mundo desde que o homem é homem. Por isso, formulam explicações maniqueístas sobre a origem da religião, do direito e da moral. Em outras palavras, o materialismo moderno afastou a filosofia de algo essencial à construção do saber filosófico, em grande parte revelado ou insinuado pelas religiões positivas, que não deixam de trazer contribuições antropológicas: o senso comum.

Nesse sentido, vem a crítica de Gilbert Keith Chesterton:

“Desde o início do mundo moderno, no século XVI, nenhum sistema de filosofia correspondeu realmente ao sentido comum das realidades, aquilo a que os homens normais, se os deixassem entregues a si mesmos, chamariam senso comum. Cada um partia de um paradoxo, um ângulo particular que exigia o sacrifício do que se chamaria um ângulo sensato.”9

Ora, está evidente que a filosofia moderna deixa de fazer as principais perguntas sobre o ser humano, construindo fora dos alicerces democráticos do senso comum, os edifícios abstratos das suas teorias. O filósofo moderno sente-se uma espécie de iluminado. Ele menospreza o senso comum, acessível a qualquer ser humano normal, como primeiro fundamento da construção do saber filosófico. O homem moderno quer desenvolver o saber filosófico a partir de uma ideia, de uma revelação, de um dogma: a sua singular visão de mundo.

Por isso, não basta ao moderno que lhe demonstremos que o casamento monogâmico, entre homem e mulher, e indissolúvel, fundamenta-se no senso comum, em parte revelado pelas religiões positivas com a sua vasta experiência antropológica, senso comum este segundo o qual o matrimônio decorreria de uma necessidade humana real. Não é bastante mostrar-lhe, ao moderno, que a monogamia e a indissolubilidade asseguram a igualdade entre os esposos e a estabilidade do lar conjugal. É insuficiente argumentar que tais características fornecem estabilidade psíquica e afetiva não apenas aos cônjuges, mas à prole, que delas necessita para desenvolver-se de modo equilibrado. De nada adianta argumentar com a real complementaridade física, afetiva e psíquica entre homem e mulher, indispensáveis para a sua realização pessoal e para a formação dos filhos.

Para o moderno, o confronto com a realidade não desmente a sua teoria. Se a realidade desmente a teoria, o orgulho moderno diz que a realidade e o senso comum é que estão errados, não a teoria. Disso se apercebeu Dostoiévski, em Memórias do subsolo:

“Mas o homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema e à dedução abstrata que está pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar a sua lógica.”

Muitos pensadores modernos sacrificam o senso comum, em favor do seu senso singular. Ocorre que as instituições religiosas – tal como o casamento, com suas notas características – possuem significado antropológico evidente, que não pode ser negligenciado. O sentimento religioso revela em grande medida o que está no senso comum, o que é, em realidade, o homem, suas necessidades e seus fins.

Preconizando o realismo aristotélico-tomista, argumenta Chesterton:

“Em outras palavras, Santo Tomás é um antropólogo, com uma teoria completa do homem, certa ou errônea, mas uma teoria. Ora, os antropólogos modernos, que se consideram a si mesmos agnósticos, falharam inteiramente como antropólogos. Dadas as suas limitações, não puderam alcançar uma visão completa do homem nem, muito menos, uma visão completa da natureza. Começaram por pôr de lado o que chamaram o incognoscível. Se pudéssemos, em verdade, tomar o incognoscível no sentido de perfeição última, quase se compreenderia ainda essa incompreensibilidade. Mas logo se verificou que todas as coisas que se tornaram incognoscíveis eram exatamente as que o homem tinha mais necessidade de conhecer. É preciso saber se o homem é responsável ou irresponsável, perfeito ou imperfeito, perfectível ou imperfectível, mortal ou imortal, escravo ou livre, não para compreendermos a Deus, mas para compreendermos o homem. Nenhum sistema que deixe estas coisas sob a nuvem da dúvida religiosa pode pretender-se uma ciência do homem: encontrar-se-ia tão longe da teologia como da antropologia.”10

A nossa convicção é a de que o tomismo, a sua concepção de ser humano e de lei natural, com a valorização do senso comum e da realidade, pode fornecer uma explicação mais exata e completa de direitos humanos e de família.
III – A lei natural


Muitos confundem o jusnaturalismo abstrato, ou jusracionalismo, com o direito natural no seu sentido objetivo ou clássico. Santo Tomás afirma que a lei natural, o direito natural, é a verdadeira fonte do direito positivo. Modernamente, cremos não ser equivocado dizer que a fonte do direito positivo são os direitos e os deveres humanos, algo devido ao homem, precisamente por ser homem, ou algo a que o homem está obrigado perante os outros homens, precisamente por serem homens.

35. Para ilustrar bem a ideia de Santo Tomás, tomando de empréstimo de Kelsen a sua norma hipotética fundamental (“devemos obedecer ao pai da constituição”), diríamos que a verdadeira norma fundamental não é hipotética, mas real: a Constituição deve obedecer à lei natural.

Normalmente se objeta serem a lei natural ou o direito natural excessivamente vagos ou abstratos. Isso se explica por duas razões principais. A primeira: o homem moderno perdeu e menosprezou algo que os pensadores antigos e medievais tinham em grande conta: o senso comum. Ele despreza as coisas óbvias apreendidas diretamente pelos sentidos. A outra, as teorias racionalistas que pretenderam ser o direito natural algo abstrato, somente encontrável no homem ideal, em estado puro, no estado de natureza. As teorias contratualistas dos primeiros liberais viam os direitos naturais como abstrações, tal qual o contrato social ou o homem no estado de natureza. As teorias racionalistas causaram um desgaste no conceito de direito natural.

Em contraposição a isso, deve-se frisar que o direito natural é sempre atual, que a lei natural está sempre presente enquanto o homem é homem. Em oposição às abstratas teorias contratualistas sobre a origem do Estado, diga-se que o Estado é uma necessidade natural do ser humano, que precisa organizar o convívio social e necessita de ordem e hierarquia dentro do grupamento humano.

Quando se objetar que a lei natural é excessivamente vaga, demonstre-se que uma carga tributária excessiva, que priva o homem do essencial para a sua subsistência, fere a sua dignidade e viola o seu direito a uma existência digna.

Santo Tomás distinguia os papéis da lei natural e da lei positiva. A lei natural é geral e universal, pelo menos em seus preceitos (ou princípios) primeiros, tal como os direitos humanos. Na verdade, compreende-se que a lei natural são os próprios direitos humanos. A lei positiva detalha, atualiza, operacionaliza a lei natural no momento histórico em que ela será aplicada. Por certo, como o conhecimento humano é cumulativo, ao longo da história, o homem vai tomando consciência cada vez maior da lei natural, dos direitos humanos. Cabe-lhe dar aplicabilidade prática à compreensão que tem da lei natural em determinado momento histórico.

Os conceitos de direitos sexuais e reprodutivos estão claramente marcados pela ideologia feminista. Esta se fundamenta ora na lógica marxista da opressão e da luta de classes ora em um liberalismo radical. A primeira luta de classes teria sido, em verdade, uma luta de gêneros. Com a invenção dos métodos anticoncepcionais, começou-se a sustentar que as mulheres encontraram a sua independência real. Que o seu papel de mães teria sido socialmente construído e não naturalmente fornecido.

Ainda que as concepções marxistas possuam algo de verdadeiro, pois dificilmente uma doutrina é inteiramente falsa, fato é que, na essência, destoam, contrariam, afastam-se muito do senso comum. O instinto materno e o papel da mulher no seio da família não são socialmente construídos, não são culturalmente determinados. Os papéis do homem e da mulher no tecido social são naturalmente distintos; nossos sentidos demonstram que homem e mulher possuem características diversas, até físicas, não obstante participem ambos da mesma dignidade, da mesma natureza de ser humano.

Por igual, também não se pode dizer que exista um gênero homossexual. Isso também não encontra suporte no senso comum, na consideração sensata da realidade sobre o ser humano. Os ideólogos dos direitos de opção ou orientação sexual preconizam que, como os papéis sexuais são social e artificialmente construídos por uma civilização repressora fundada na busca da mais-valia, na verdade, a homossexualidade, não fosse a lógica repressora, equivaleria à heterossexualidade. Por aí se vê, novamente, o que vimos sustentando: a lei natural, os direitos humanos, não comportam interpretações – manipulações – ideológicas. A ideologia sempre se baseia em um senso particular, singular, reducionista da realidade. Ela é sempre parcial. Somente o senso comum, com a sua natural abertura à totalidade do ser humano, pode fornecer com segurança luzes neutras sobre os direitos inalienáveis dos seres humanos, e não somente das mulheres, e não somente dos homossexuais, e não somente dos bissexuais, e não somente dos índios, e não somente dos idosos, e não somente dos deficientes.

Indício claro de que se está sacrificando o senso comum em benefício do senso singular, ou parcial, é a tendência de distinguir entre seres humanos, de tomar partido de uns em detrimento de outros, de conceder direitos “humanos” especiais ou exclusivos a mulheres (como o de matar seus filhos nascituros), a homossexuais (o de não verem questionado o seu estilo de vida, mesmo com sacrifício da liberdade de crença da grande maioria), a negros, a deficientes, a índios. Ora, a própria noção de direitos humanos não se compadece com a ideia de direitos exclusivos das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos deficientes e dos índios. Os direitos humanos, ou direitos naturais, são comuns a todos os homens, a todo o gênero humano. Visões parciais de mundo não são aptas a engendrar com sensatez concepções de direitos humanos.
IV – A lógica materialista possui fins materialistas

Há quem sustente, a nosso ver, com razão, que por trás da ideologia dos direitos sexuais exista o propósito de controlar a demografia nos países em desenvolvimento. Sabe-se que a difusão do aborto, e crê-se que a difusão do casamento homossexual, são meios eficazes de controle da natalidade. Seria estranho pensar que a Fundação Rockfeller, a Fundação MacArthur e a Fundação Ford, que tanto se engajam nessa causa – é difícil encontrar uma única iniciativa nessa temática em que alguma delas não se envolva de alguma forma, incluídos trabalhos de Marcuse e o livro Em defesa dos direitos sexuais acima citado –, estejam voltadas para objetivos altruístas, metafísicos. Talvez seja o caso de analisar, a partir do seu próprio critério de interpretar a história, os seus motivos, os meios empregados e os seus objetivos reais.

São ilustrativos os seguintes esclarecimentos:

“Apesar destas interpretações, não existe atualmente nenhum texto internacional sobre direitos humanos que formule, de modo explícito, os direitos reprodutivos. Encontra-se somente o reconhecimento, em instrumentos jurídicos nacionais e internacionais, de faculdades relativas à procriação humana, à família e à vida. Porém, tais faculdades estão longe de ser unanimemente reconhecidas na ótica sustentada pelos promotores dos DDSSRR [direitos sexuais e reprodutivos].

Para preencher este vazio, o IPPF [International Planned Parenthood Federation] elaborou e propôs uma Carta dos assim chamados DDSSRR, com a intenção de aplicar os documentos conclusivos da Conferência da ONU no Cairo (1994) e em Pequim (1995) a que já acenamos. (...) Mesmo se o IPPF apresenta a própria hermenêutica dos direitos reprodutivos como se se tratasse da hermenêutica da ONU, na realidade ela corresponde a uma visão ideológico-política muito particular (...).

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Como é sabido, o IPPF foi criado em 1952, com sede central em Londres e com organizações afiliadas – Associações de Planejamento Familiar (APF) – em cento e quarenta países. É a organização não governamental mais potente e influente a promover o controle demográfico mundial. Seu balanço supera os cem milhões de dólares e suas fontes de entrada são tanto os Estados – principalmente a Grã Bretanha – quanto entidades privadas, como as fundações norte-americanas Ford, Rockefeller, Hewlett e MacArthur. Suas ações refletem uma ideologia liberal ‘radical’ ou ‘absoluta’ e usam esta Carta como instrumento para difundir algumas liberdades; não se trata, porém, de simples liberdades negativas – onde o Estado não intervém – mas, ao contrário, de direitos positivos, exigências diretas ao Estado por parte de indivíduos, que procedem com uma lógica de ‘clientes’ e não de ‘pacientes’. ”11

Talvez o senso comum nos ajude a descobrir porque, em benefício de uma peculiar ou singular visão de mundo, pedem-nos para sacrificar o nosso juízo e o que os sentidos de todos os homens normais do mundo podem descobrir pela simples e serena observação da realidade, ajudados pelo conhecimento antropológico colhido pela experiência religiosa.
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Bibliografia


CHESTERTON, Gilbert Keith. Santo Tomás de Aquino: biografia. Tradução e notas de Carlos Ancêde Nouguê. São Paulo: LTr, 2003.

CORÇÃO, Gustavo. Dois amôres – duas cidades. 1. Na Antiguidade e na Idade Média. Rio de Janeiro: Agir, 1967.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2005.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

LOPES, José Reinaldo de Lima et alli. Em defesa dos direitos sexuais. Organizador: Roger Raupp Rios. Porto Alegre: Livraria Editora do Advogado, 2007.

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA. Lexicon: Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Brasília: Edições CNBB, 2007.
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1 Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 81-2.
2 Op. cit., p. 82.
3 A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 46.
4 Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 116.
5 Op. cit., p. 51-2, com o esclarecimento de que o direito romano admitia, segundo Coulanges, formas de casamento não religioso, embora o casamento sagrado fosse o mais antigo.
6 Eros e Civilização. Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara. p. 33.
7 Direito de Família. p. 19-21.
8 Dois amôres – duas cidades. 1. Na Antiguidade e na Idade Média. Rio de Janeiro: Agir, 1967. p. 29.
9 Santo Tomás de Aquino: biografia. Tradução e notas de Carlos Ancêde Nouguê. São Paulo: LTr, 2003. p. 126.
10 Op. cit., p. 139.
11 CANCIO, José Alfredo Peris. Verbete: Direitos sexuais e reprodutivos. In: Pontifício Conselho para a Família. Lexicon: Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Brasília: Edições CNBB, 2007. p. 248-50.
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* Paul Medeiros Krause é procurador do Banco Central em Belo Horizonte/MG

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Discussão com Luís Roberto Barroso

Prezado Dr. Tiago:

Tive oportunidade de ler, com mais vagar, seus comentários ao meu texto. Agradeço-lhe, em primeiro lugar, de coração, as retificações de digitação — e uma ou outra, gramatical mesmo —, que me foram de proveito. Registro, em segundo lugar, nossa afinidade quanto a antipatizarmos com a intolerância. A capacidade de reconhecer e apreciar o outro, nas suas diferenças, é um diferencial civilizatório.

Penso, igualmente, que a religião desempenha um papel muito relevante nas sociedades contemporâneas. E acho que a fé sincera, aliada à tolerância e aos bons sentimentos, são trunfos na vida. Portanto, também aqui não temos uma divergência significativa. O que acho, no entanto, é que o Estado — não as pessoas! -- deve ser laico. Vale dizer: não deve apoiar nem depender de qualquer religião. O que não significa ser contra, tampouco. Porém, nas instituições estatais, no debate público, os argumentos têm que ser laicos. O juiz de família não pode decidir: entrego a guarda dessa criança aos avós maternos, que são cristãos, e não aos avós paternos, que são judeus. Ou absolver alguém, sob a afirmação de que na Bíblia está dito ''olho por olho, dente por dente''. No espaço público deve prevalecer a razão pública, isto é, argumentos que possam ser compartilhados por todos, crentes e não crentes. Se não, cria-se um modelo de exclusão de alguns.

Fui socialista em outra época da minha vida. Hoje me considero mais um social-democrata. Mas há muitas formas e exemplos de socialismo democrático, praticado em diferentes partes do mundo, inclusive, em diversos momentos, na França e em Portugal, países de tradição católica. Tampouco alimento sentimentos de anticomunismo. Pelo contrário, há lugar no mundo para todas as ideias. Só teria intolerância para com as ideologias da violência.

A questão do aborto é moralmente controvertida em todo o mundo. Não há consenso sobre ela nem na minha casa. De modo que respeito a visão de que a vida começa na concepção. Como respeito as outras visões. A única solução que não aprecio é a que criminaliza uma das posições. Vale dizer: se você não é como eu ou não penso como eu, cadeia para você! Essa visão não tem minha adesão.

A questão da anencefalia, a meu ver, não envolve aborto. Veja que não existem crianças ou adultos anencefálicos. O caso da menina Marcela, segundo me afirmaram diversos médicos em audiência pública no STF, não era nem poderia ser anencefalia. Ali houve uma politização do diagnóstico. Ao contrário da questão do aborto, em que há múltiplas posições, em relação à anencefalia somente grupos religiosos foram contra. Isso não diminui a legitimidade do seu ponto de vista. Mas, de novo, não creio razoável que se considere criminosa a mulher que pense diferente e não deseje se submeter ao sofrimento.

Não tenho intenção de convencê-lo de nenhum dos meus argumentos. Escrevo-lhe apenas porque acredito que pessoas que têm visão de mundo diferentes podem dialogar e procurar comprender umas as outras.

Grato uma vez mais. Cordialmente, Luís Roberto Barroso

Luís Roberto Barroso & Associados

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Breves notas sobre a liberdade de manifestação do pensamento em escolas confessionais

Recentemente, veio à balha a história de um professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná que, em sala de aula, havia comparado a hóstia à maconha, dizendo: ...“a eucaristia é um baseado, que o padre vai passando de mão em mão… É uma droga lícita…".
Não me impressiona a existência de pessoas que tenham a capacidade de dizer coisa semelhante a esta, pois, se Deus foi generoso num ponto, o foi ao conceder ignorância quase ilimitada a certos indivíduos. Causou-me desconforto a resposta da própria PUC/PR, para quem: "A universidade é um lugar de debate e de discussões da ciência, que preza pelo pluralismo ético, filosófico e religioso, características que fazem parte do que é ser acadêmico”.
Sem sombra de dúvida, afirmo que a aludida declaração poderia ser feita por qualquer reitor do mundo, exceto por aqueles que dirigem instituições de ensino confessionais.
E isso, e aqui entro especificamente no ponto, porque as escolas confessionais têm... uma fé, ora bolas!
De fato, não é possível admitir que determinado professor da Escola Adventista, por exemplo, chegue à sala de aula e diga algo contrário à crença dos adventistas. Nem seria conveniente que numa escola judaica se permitisse que o professor pregasse ideias contrárias ao judaísmo. E assim por diante.
A liberdade de expressão vale da porta para fora. E não da porta para dentro. Da porta para dentro de uma escola católica valem os dogmas católicos! E quem não gostar que vá ministrar ou receber aula em outro lugar!
Confundem-se, ao se dizer que a liberdade de manifestação do pensamento garante esse tipo de comportamento (a liberdade de contrariar um dogma católico dentro de uma universidade católica), dois âmbitos da aplicação dos direitos fundamentais (aqui se trata do direito fundamental à liberdade de manifestação do pensamento). Mistura-se o direito que as pessoas têm de falar o que querem, desde que o façam num ambiente público, com aquele que elas não têm de manifestar opiniões contrárias às das instituições religiosas que bem ou mal representam e que lhes pagam os salários.
Ninguém é obrigado a ser católico. A despeito do que muitos desavisados dizem por aí, nem na Idade Média europeia se era. No entanto, se determinada pessoa se dispõe a ministrar aula numa instituição de ensino católica, é óbvio que haverá de atender ao requisito mínimo; qual seja: portar-se respeitosamente diante dos dogmas católicos.
Se quer falar mal da hóstia ou do Papa, que o faça! Fora da PUC/PR, claro! Que vá plantar suas ideias em outras terras!