sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Justiça do Trabalho: Direito x Ideologia

Há algo de estranho nos julgamentos atuais. Algo muito esquisito. Sabe-se lá por qual razão, os estudiosos brasileiros importaram principalmente da Alemanha uma série de estudos que passaram a ser identificados como pós-modernos(1) . Nestes, quem com eles se depara identifica facilmente uma característica, algo que todos esses estudos têm em comum: a exagerada função dos princípios na argumentação jurídica(2).

Bom, o que realmente se vê depois do contato que os magistrados brasileiros tiveram com a doutrina estrangeira, mesmo porque talvez se trate de relacionamento fortuito e ocasional, é que as regras de direito positivo, o direito tal qual posto nas leis, as regras passaram a ser interpretadas de maneira tão elástica que, em algumas ocasiões, ninguém mesmo sabe para que servem.

Esse drama por que passam os jurisdicionados é ainda maior na Justiça do Trabalho, uma vez que o Direito do trabalho se encontra, desde sua origem, dominado por uma corrente ideológica de inegável matiz socialista.

Com efeito, e isso é facilmente comprovado pela leitura de qualquer manual da matéria, tem-se a equivocada visão de que o Direito do trabalho aspira a resguardar o direito dos trabalhadores contra a opressão dos empregadores, como se em todos os casos os empregadores fossem vilões, e os trabalhadores bonzinhos(3); retrato de uma visão de mundo maniqueísta que ainda campeia as mentes imaginativas de alguns que cultuam o Direito do trabalho, mas que ganha adeptos mesmo fora dessa seara, principalmente no novel Direito do consumidor.

Há muitos e muitos exemplos que poderiam ser dados para ilustrar tal afirmação, mas basta este parágrafo da lavra de um ministro do Tribunal Superior do Trabalho(4) para tanto:

“De fato, o ramo justrabalhista incorpora, no conjunto de seus princípios, regras e institutos, um valor finalístico essencial, que marca a direção de todo o sistema jurídico que compõe. Este valor – e a conseqüente direção teleológica imprimida a este ramo jurídico especializado – consiste na melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem sócio-econômica.”

Em que pese o fato de parecer que eu seja um mau-caráter que não se preocupa com a explorada e espoliada classe operária, vilipendiada pelos malvados empresários que dela querem arrancar até a alma, como se esses mesmos empresários não precisassem de uma classe operária bem remunerada para adquirir os produtos e serviços que fabricam e comercializam, o que interessa é que ao Direito não cabe a tentativa de melhorar as condições de pactuação da força de trabalho. O Direito tem outra função; qual seja: dar a cada um aquilo que é seu, de acordo com as leis vigentes.

Quem tem a obrigação de melhorar as condições de pactuação da força de trabalho são aqueles que firmam os pactos de trabalho, desde que o façam com esteio nas regras do jogo. E as regras do jogo, dentro de um Estado democrático, são as leis votadas pelo parlamento – e não a vontade deste ou daquele juiz.

A partir do momento em que os juízes começam a descumprir a lei, porque, segundo entendem, há um ou outro princípio de acordo com o qual o Direito do trabalho tem de ir além de simplesmente dar ao trabalhador aquilo a que tem direito, os juízes em realidade usurpam a competência do parlamento e imiscuem-se em assuntos que lhes não dizem respeito para fazer o que pensam ser justo.

Ao agirem dessa forma, desrespeitam a vontade soberana do povo, a qual se encontra estampada em leis, para impor a uma das partes do processo, aquela que consideram bafejada pela fortuna, obrigações que tiram de suas próprias cartolas. E se os juízes desrespeitam as leis, não agem mais como juízes; senão como infratores tais quais aqueles que querem punir.

Um exemplo marcante, felizmente já corrigido pelo Tribunal Superior do Trabalho, é a aplicação da multa prevista no art. 475-J do Código de Processo Civil às execuções trabalhistas(5); lembrando que tal multa não se encontra prevista na Consolidação das Leis do Trabalho, que rege a fase executiva da reclamação trabalhista(6) de modo totalmente diferente do que é feito pelo Código de Processo Civil.

Para aplicar a aludida multa, muitos e muitos magistrados da Justiça do Trabalho partiram do pressuposto segundo o qual, a despeito de evidentemente não haver lacuna normativa na Consolidação das Leis do Trabalho que permita a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil(7), haveria lacuna ontológica que justificaria a aplicação da multa prevista no art. 475-J do Código de Processo Civil.

Lacunas ontológicas, pelo que eu entendi, seriam aquelas que demonstrariam o descompasso entre a norma que existe e aquela que deveria existir de acordo com a concepção de mundo do magistrado.

O que se deve destacar é que o princípio da separação dos poderes determina, grosso modo, que os legisladores façam as leis e que os juízes as apliquem quando provocados a fazê-lo.

Se os juízes querem mudar as leis, que concorram e se elejam para o parlamento e lá proponham as mudanças que entendam cabíveis na legislação atual.

O que não podem fazer é utilizar um princípio de conteúdo cinzento para, fundando sua argumentação nele, deixar de cumprir norma que se encontra veiculada por lei. Mormente porque, como bem destacado pela doutrina, às mais das vezes os princípios não detêm densidade normativa suficiente para justificar a decisão de não aplicar certa lei a determinado caso concreto(8).

Do exposto, infere-se que as leis hão de ser aplicadas sempre e em todas as ocasiões, a não ser que colidam frontalmente com princípios constitucionais com conteúdo palpável ou com regras da própria Constituição, sob pena de se instituir o que já se denomina de império dos juízes – comportamento que há de ser adotado inclusive e principalmente pela Justiça do Trabalho, tão sensível às demandas dos empregados quanto insensível aos direitos daqueles que proporcionam trabalho e dignidade a parcela significativa da população, que são os empresários e demais empregadores.
Referências:

1) Elival da Silva Ramos tece críticas pertinentes ao movimento que se autodenomina pós-modernismo constitucional, principalmente à ausência de conteúdo normativo na argumentação que desenvolvem seus adeptos (in Ativismo judicial – parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010).

2) “O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria dos princípios, é a estrutura dos direitos que essas normas garantem. No caso das regras, garantem-se direitos (ou se impõem deveres) definitivos, ao passo que no caso dos princípios são garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie” (SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 45).

3) A própria denominação de trabalhadores para aqueles que em realidade são empregados já demonstra, só por si, o preconceito que há contra os empresários no Brasil. Ou será que os empresários não são trabalhadores?

4) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 55.

5) Código de Processo Civil:
“Art. 475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação.”

6) Consolidação das Leis do Trabalho:
“Art. 880. Requerida a execução, o juiz ou presidente do tribunal mandará expedir mandado de citação do executado, a fim de que cumpra a decisão ou o acordo no prazo, pelo modo e sob as cominações estabelecidas ou, quando se tratar de pagamento em dinheiro, inclusive de contribuições sociais devidas à União, para que o faça em 48 (quarenta e oito) horas ou garanta a execução, sob pena de penhora.
“§ 1º - O mandado de citação deverá conter a decisão exeqüenda ou o termo de acordo não cumprido.
“§ 2º - A citação será feita pelos oficiais de diligência.
“§ 3º - Se o executado, procurado por 2 (duas) vezes no espaço de 48 (quarenta e oito) horas, não for encontrado, far-se-á citação por edital, publicado no jornal oficial ou, na falta deste, afixado na sede da Junta ou Juízo, durante 5 (cinco) dias.
“Art. 881 - No caso de pagamento da importância reclamada, será este feito perante o escrivão ou secretário, lavrando-se termo de quitação, em 2 (duas) vias, assinadas pelo exeqüente, pelo executado e pelo mesmo escrivão ou secretário, entregando-se a segunda via ao executado e juntando-se a outra ao processo.
“Parágrafo único - Não estando presente o exeqüente, será depositada a importância, mediante guia, em estabelecimento oficial de crédito ou, em falta deste, em estabelecimento bancário idôneo.
“Art. 882 - O executado que não pagar a importância reclamada poderá garantir a execução mediante depósito da mesma, atualizada e acrescida das despesas processuais, ou nomeando bens à penhora, observada a ordem preferencial estabelecida no art. 655 do Código Processual Civil.
“Art. 883 - Não pagando o executado, nem garantindo a execução, seguir-se-á penhora dos bens, tantos quantos bastem ao pagamento da importância da condenação, acrescida de custas e juros de mora, sendo estes, em qualquer caso, devidos a partir da data em que for ajuizada a reclamação inicial.”

7) Consolidação das Leis do Trabalho:
“Art. 769 - Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título.”

8) ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios (da definição à aplicação dos princípios jurídicos). 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

A Constituição dos Miseráveis - Parte I

I – Propedêutica
Há algumas personalidades que realmente marcam a vida de quem delas se aproxima. De uma me acheguei recentemente, lendo seu livro de memórias autobiográficas denominado “A lanterna na popa”.
Trato de Roberto Campos, um verdadeiro profeta cujas profecias foram solenemente ignoradas pela intteligentsia brasileira; a qual se encontra dominada por um nacionalismo bocó com certo viés esquerdizante que deixa qualquer ser racional fulo da vida.
Num capítulo de seu excelente livro, Roberto Campos abordou a síndrome que havia tomado conta dos constituintes de 1988, aqueles que elaboraram a Constituição dos Miseráveis.
Aqui e em outros artigos que virão em seqüência, versarei sobre alguns aspectos dessa Constituição de 1988: coletânea de cláusulas bobas com aspirações patéticas, misturadas a poucas regras que realmente deteriam caráter constitucional.
Só para demonstrar que tenho razão quando aludo aos anseios enternecedores da Carta de 1988, relembro o surreal art. 192, graças a Deus derrogado, em cujo parágrafo 3º havia o início da tipificação penal da usura, conduta então consistente em cobrar juros superiores a 12% ao ano.
Imagine só em que pé estaríamos à época em que o Brasil oferecia aos seus credores juros superiores a 20% ao ano. Em situação assim, se se levasse a sério o aludido dispositivo constitucional, cometeriam crime de usura todos aqueles que viessem a adquirir títulos colocados no mercado pelo próprio Brasil!
Nossos constituintes, nossos founders fathers realmente não se amedrontavam diante do ridículo: vestiam-no como aquele que põe roupa cosida sob medida!
Alguns pontos da Constituição – que não chegam a ser tão escandalosamente absurdos quanto o vetusto parágrafo 3º do art. 192 – ainda causam uma série de desconfortos à sociedade brasileira.
E um país só cresce se houver, concomitantemente: liberdades individuais (no sentido clássico em que foram concebidas); respeito aos contratos e à propriedade privada; e segurança jurídica.
Neste primeiro artigo, cumpre-me a missão de abordar alguns aspectos que dizem respeito à instabilidade jurídica provocada pela Constituição dos Miseráveis, principalmente depois que os sazonais ocupantes do Supremo Tribunal Federal resolveram alterá-la de acordo com que pensam ser belo e justo.
E aqui se passará inequivocamente pela análise de um caso concreto: o mandado de injunção nº 708, por meio do qual alguns funcionários de uma grande empresa pedem seja regulamentado o art. 7º, inc. XXI, da Constituição Federal; artigo que garante “aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei”.
Com o deslinde do artigo, concluir-se-á que Roberto Campos, ao jocosamente denominar a Constituição de 1988 de Constituição dos Miseráveis, exercia mais uma vez seu dom profético.
De fato, se continuarmos assim, seremos todos miseráveis; mas miseráveis cheios de direitos constitucionais!
II – O Mandado de injunção: mais uma jabuticaba?
Já se disse, e não creio seja uma brincadeira destituída de fundamento, que, se só há no Brasil, mas não é jabuticaba, então é besteira.
Bom, a fim de dar aplicabilidade às normas constitucionais, a Constituição de 1988 trouxe uma inovação: o mandado de injunção.
Em seu art. 5º, prescreve a Constituição:
“LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;”
Noutro versar: caso não haja norma que regulamente qualquer dos muitos artigos da Constituição, o Poder Judiciário haverá de tomar alguma atitude.
Saber qual é a posição que o Poder Judiciário terá de tomar é que é o problema.
Duas foram as interpretações relevantes dadas ao mandado de injunção: i) primeiro, o Supremo Tribunal Federal decidiu em diversas ocasiões que não poderia ocupar o espaço do Poder Legislativo, limitando-se a notificar o legislador em mora para que tomasse alguma providência; ii) segundo outra interpretação do mandado de injunção, agora em alta no mesmo Supremo Tribunal, caberia ao Poder Judiciário regulamentar o caso concreto colocado em julgamento, garantindo o exercício do direito constitucional ainda não regulamentado pela legislação inferior.
As duas posições exibem uma série grande de problemas.
A primeira delas diz respeito à eficácia da própria Constituição Federal, cujas normas seriam burladas pela desídia do legislador em regulamentá-las.
Ao que parece, no entanto, a regulamentação do caso concreto pelo Supremo Tribunal Federal traz consigo mais problemas do que soluções.
De fato, ao regular o aviso-prévio dos impetrantes do mandado de injunção nº 708, o que fará o Supremo Tribunal Federal?
Fraturará o sistema de tal modo que a isonomia nunca mais será alcançada, a não ser que realmente se queira passar todas as atribuições do Congresso Nacional a onze homens que politicamente só representam a eles próprios e a mais ninguém.
III – As Conseqüências Nefastas
O Supremo Tribunal resolverá o problema dos impetrantes ao afirmar que eles têm direito a tantos dias de aviso prévio a cada ano trabalhado.
E daí?
Disso infiro que: ou se aplica o julgado a todos os trabalhadores brasileiros, estendendo indevidamente a eficácia do mandado de injunção para além dos limites subjetivos da lide; ou se restringe a eficácia do mandado de injunção aos limites subjetivos da lide, favorecendo unicamente seus impetrantes.
Qual seria o pior cenário?
Institucionalmente, os dois cenários previstos acima são péssimos.
Se o Supremo Tribunal limitar a aplicação da regra criada em tal mandado de injunção aos impetrantes, criará verdadeira norma de exceção, ferindo de morte o princípio da igualdade e, se tais impetrantes já foram demitidos no transcorrer do procedimento (argumento hipotético), o princípio da irretroatividade das leis.
Com efeito, por que só os impetrantes terão direito a mais dias de aviso prévio, e os outros trabalhadores brasileiros não? Onde estaria o princípio da igualdade perante a lei?
De outro viés, se o Supremo Tribunal pretender que sua decisão seja aplicada a todos os trabalhadores brasileiros, fixando o que seria quase uma decisão vinculante porque tenderá a se posicionar de igual modo em casos assemelhados, usurpará as funções do legislador e criará a instabilidade jurídica no país.
IV – Conclusão
Do exposto concluo, sem grandes dificuldades, que as bobagens da Constituição dos Miseráveis, dentre as quais destaco agora o mandado de injunção, criam um ambiente insalubre para os brasileiros, que hoje em dia nem mais sabem quem tem ou não o poder de legislar nem sabem que lei devem seguir, se é que se pode dizer que devem seguir leis e não homens (ainda que togados).
Se as coisas continuarem assim, confesso: mudarei para a Venezuela. Pelo menos lá eu sei quem tem capacidade para legislar: o Presidente!

A Constituição dos Miseráveis - Parte II

I - Propedêutica

No artigo passado, procurei demonstrar que os poderes outorgados ao Poder Judiciário pela Carta de 1988 trazem aos brasileiros mais problemas do que soluções, uma vez que, tomando o exemplo do mandado de injunção, permitem a criação de regras jurídicas que não detêm generalidade, normas jurídicas que se não aplicam a todos. Noutro versar: normas que beneficiam alguns em detrimento dos demais.[i]
Agora, cumpre-me realçar alguns aspectos socializantes da Constituição de 1988, tais como a rigidez das regras que regem o contrato de trabalho e a tal função social da propriedade.
Para tanto, descartarei a análise do inciso XXVII do art. 7º, segundo o qual os trabalhadores têm direito à “proteção em face da automação na forma da lei”.
De fato, não consigo compreender como o Estado brasileiro assumiu para si a obrigação de proteger o trabalhador contra a automação das atividades fabris, sem que isso traga à minha mente a imagem de centenas de costureiras trabalhando num galpão empoeirado para realizar o serviço que algumas máquinas poderiam fazer em poucos minutos.
Será que a Constituição de 1988 condenou a todos os brasileiros a viver na idade da pedra? Será que eu, dono de uma indústria têxtil, não poderei substituir dez costureiras por uma máquina?
Poder-se-ia indagar: mas e as costureiras, coitadinhas, o que farão?
Certamente as costureiras trabalharão em outra coisa, talvez até na própria empresa; mas, se minha indústria fechar e outras indústrias semelhantes cerrarem também as portas porque não conseguem mais competir num mercado internacional que exige baixos custos, essas dez costureiras nunca mais voltarão ao mercado de trabalho, pela simples razão de que o Estado brasileiro terá acabado com o mercado de trabalho; mas com a tenção de defender os trabalhadores brasileiros dos malefícios do desenvolvimento tecnológico.[ii]
Para se ter ciência do tamanho dos equívocos cometidos pela Constituição de 1988, tem-se de compará-la, ainda que tal comparação seja breve, à Constituição de Portugal, na qual os sábios constituintes brasileiros buscaram inspiração.

II – Portugal: uma tragédia anunciada

No preâmbulo de sua Constituição, amada pelos doutrinadores brasileiros porque seria o exemplo de Constituição dirigente que deveríamos adotar e que ao final acabamos adotando, os portugueses tiveram a ousadia de se reunir para “estabelecer os princípios basilares da democracia” e “assegurar o primado do Estado de Direito democrático” a fim de “abrir caminho para uma sociedade socialista”.
É claro que, depois de longa polêmica[iii], os portugueses deixaram de aspirar a viver numa sociedade socialista. No entanto, o socialismo já havia deixado suas marcas no pobre povo português, que levou tão a sério o dirigismo constitucional e conseqüentemente estatal, que agora se vê em maus lençóis. Em verdade, os portugueses não descobriram quem pagará a conta de uma sociedade tão fraterna e humana, em que as pessoas trabalham pouco, querem ganhar muito e viver à sombra de um Estado onipotente, como é o caso de todos os países que tendem ao socialismo.
A tragédia portuguesa estava anunciada no pórtico de sua dirigente Constituição; a qual dirige o pobre povo português ao fracasso absoluto, de tal arte que até alguns portugueses hoje defendem a incorporação de Portugal a Espanha[iv].
Não há no mundo nada que possa influenciar tanto a elite brasileira quanto um fracassado modelo constitucional europeu[v].

III – O Contrato de Trabalho na Constituição de 1988

Alguém poderia esclarecer por que no Brasil é mais fácil acabar com um casamento do que com um contrato de trabalho?
Hoje, para se pôr cobro a um casamento, basta que ambos os consortes, desde que não tenham filhos pequenos, vão ao cartório da esquina.
Para contratar e principalmente para demitir um funcionário, há um rosário de exigências que parece não ter fim.
São duas as causas de tantas dificuldades: a primeira delas foi a adoção do regime síndico-fascista italiano pela Consolidação das Leis do Trabalho[vi]; a outra foi a elevação de tal regime ao nível constitucional pela Carta de 1988.
Com efeito, há na Constituição de 1988, só em seu art. 7º, nada menos do que 34 (trinta e quatro) regras para regulamentar o contrato de trabalho. Há ordenamentos jurídicos inteiros que contam com menos normas trabalhistas do que as elevadas ao panorama constitucional brasileiro atual.
O que se extrai daí é uma orientação muito firme do Estado brasileiro de tutelar seus súditos como se eles fossem todos irresponsáveis pelos próprios atos. Chegou-se ao extremo de impor uma poupança forçada, que é o FGTS (art. 7º, inc. III), porque o trabalhador brasileiro seria incapaz de decidir entre poupar parte de seu salário para enfrentar eventual período de dificuldades ou comprar uma televisão nas Casas Bahia. Com essa poupança forçada, o Estado tira do trabalhador uma parcela do seu salário, apropriando-se dela temporariamente para... Bom, todos sabemos o que o Estado faz com o dinheiro que lhe chega às mãos.
Afora a quantidade de garantias que têm o trabalhador brasileiro, ainda há os custos que sua manutenção acarreta, como, por exemplo, a absurda carga tributária que recai sobre a folha de salários[vii].
Note-se bem o que tamanha regulamentação fez ao Brasil: o trabalho informal, aquele desempenhado por quem não tem respeitado qualquer direito seu, corresponde a 28,2% do trabalho no Brasil, de acordo com o PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). E isso em 2010, ano em que a economia brasileira entrou em verdadeiro frenesi!
Ou seja: num bom momento econômico, quase 1/3 dos trabalhadores brasileiros trabalham informalmente, sem qualquer direito, porque o Estado garante direitos demais aos outros 2/3.
O que se haveria de fazer era tornar as regras do contrato de trabalho mais elásticas, a fim de dotá-lo de certo dinamismo e, também, permitir que as partes decidam o que lhes é mais conveniente de acordo com as regras do mercado.
Sem tal liberdade, a qual adviria da autonomia que se haveria de conceder aos participantes do contrato de trabalho, parcela significativa dos trabalhadores brasileiros estará fadada a viver na informalidade, curiosamente porque tem direitos demais.
Para finalizar: quem paga a conta dos direitos fruídos por 2/3 dos trabalhadores brasileiros são aqueles que trabalham sem qualquer direito, os denominados trabalhadores informais; os quais somam mais de 15 milhões de pessoas, ainda de acordo com o PNAD de 2010.

IV – A Função Social da Propriedade

Outra coisa engraçada da Constituição de 1988 é a garantia da propriedade privada condicionada ao atendimento de sua função social (arts. 5º, incs. XXII e XXIII, e 170, inc. III, da Carta).
O problema todo é que cabe ao Estado delimitar quando a propriedade privada estará ou não desempenhando sua função social. Ou seja: a propriedade privada no Brasil, depois da Constituição de 1988, é algo que pode ser relativizado de acordo com o bel-talã estatal.
E não é outra coisa que se vê agora senão o alargamento das hipóteses nas quais o Estado pode desrespeitar a propriedade privada, fazendo dela o que bem quer.
São expropriações de terras e mais terras realizadas com o pretexto de que são áreas tradicionalmente ocupadas por índios ou quilombolas, são desapropriações feitas sob as vestes do interesse social, muitas vezes com o intento de beneficiar os amigos do sazonal ocupante do poder (quer figurem como proprietários que sofrem a desapropriação ou como recebedores das áreas desapropriadas).
E tudo isso por quê?
Ora, porque a propriedade privada tem de cumprir sua função social; conceito delimitado pelo próprio Estado que se beneficia quando a propriedade privada não cumpre tal função social, a qual, a bem da verdade, ninguém sabe qual é.
E não se digam balelas como aquela segundo a qual a propriedade privada cumpre sua função social quando o proprietário a utiliza em benefício de outrem[viii]. Diante de afirmação assim, pergunto: aquele que é proprietário de uma só casa, como poderia usá-la em benefício de outrem? Chamando-o para morar consigo?
O que se fez, sob as vestes do bom-mocismo, foi dar poderes ilimitados para que o Estado pudesse apropriar-se da propriedade privada quando bem quisesse e sob qualquer pretexto, pois qualquer pretexto cabe no conceito cinzento de função social da propriedade.
As conseqüências daí advindas são as mais claras: a relativização da propriedade privada acarreta a insegurança jurídica e tende a tornar o Estado um ente onipotente com o direito de interferir até mesmo no modo como as pessoas usam sua casa.
É claro que isso não poderia dar em coisa boa.

V – Conclusão

A conclusão que extraio do que até aqui foi exposto é muito singela: a Constituição de 1988, a despeito de não ter assumido declaradamente seu viés intervencionista e socializante, como corajosamente fez a Constituição portuguesa de 1976, tornou o Brasil um país mais injusto e inseguro.
E não poderia ser diferente.
Em verdade, em todas as vezes nas quais se quer acabar com a mazelas sociais com a pena e o papel, o que se consegue é acabar com a liberdade dos indivíduos e com a dinâmica da sociedade, tornando as pessoas estado-dependentes.


[i] A generalidade é uma das características essenciais das normas jurídicas em regimes democráticos. Com efeito, a igualdade perante a lei, prevista no próprio caput do art. 5º da Constituição Federal, só pode existir se as leis – tomadas aqui como sinônimo de norma jurídica – forem amplas de modo a abarcar em seus mandamentos todas as pessoas. Se houver uma lei para Fulano e outra para Beltrano, como essas pessoas poderão receber tratamento igual?
[ii] Curioso é que em recente reportagem, a revista Veja (edição 2.228) trouxe o panorama econômico da Espanha, país em que os trabalhadores têm tantos direitos que ninguém mais trabalha, porque as empresas simplesmente estão indo embora de lá ou cerrando as portas.
[iii] Uma síntese sobre a polêmica alteração do preâmbulo da Constituição de Portugal pode ser encontrada em Luís Roberto Barroso, Curso de Direito constitucional contemporâneo, 2. ed. São Paulo, Saraiva, 2010.
[iv] O escritor Valter Ugo Mãe aborda tal idéia no romance A máquina de fazer espanhóis.
[v] Outro modelo constitucional citado e rememorado pelos estudiosos brasileiros, e por eles tomado como exemplo a ser seguido, é o da Alemanha à época da República de Weimar.
Não por acaso, foi o sistema constitucional que permitiu a ascensão de Hitler ao poder.
[vi] Certa feita, estive no Tribunal Superior do Trabalho e lá me deparei com um museu no qual era homenageado o presidente Getúlio Vargas.
Era a primeira vez que via um ditador ser honrado pelo Poder Judiciário.
Com o tempo, no entanto, a advocacia vem mostrando que a contradição existente numa homenagem feita pela Justiça do Trabalho ao mencionado tirano era mais aparente do que real.
[vii] “De acordo com estudo do economista Hélio Zylberstajn, da Universidade de São Paulo, contratar um funcionário hoje no Brasil significa para as empresas pagar o valor do salário e mais 102% em encargos trabalhista. Para ele, se esses tributos fossem revertidos em remuneração, os trabalhadores brasileiros teriam um aumento de 42% em seus salários” (extraído do site do jornal Folha de São Paulo em 15 de agosto de 2011 - http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/sonosso/gd310101.htm).
[viii] Eros Roberto Grau, em livro no qual chega a imputar ao capitalismo a culpa pelo Mal da Vaca Louca, assim assevera: “O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade... Em razão disso – pontualizo – é que justamente a sua função social justifica e legitima essa propriedade” (A ordem econômica na Constituição de 1988. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 251/251).